(UERJ) TEXTO PARA A PRÓXIMA QUESTÃO:
A palavra
Tanto que tenho falado, tanto que tenho escrito − como não imaginar que, sem querer, 4feri alguém? Às vezes sinto, numa pessoa que acabo de conhecer, uma hostilidade surda, ou uma reticência de mágoas. 1Imprudente 5ofício é este, de viver em voz alta.
11Às vezes, também a gente tem o 6consolo de saber que alguma coisa que se disse por acaso ajudou alguém a se 9reconciliar consigo mesmo ou com a sua vida de cada dia; a sonhar um pouco, a sentir uma vontade de fazer alguma coisa boa.
Agora sei que outro dia eu disse uma palavra que fez bem a alguém. Nunca saberei que palavra foi; deve ter sido alguma frase 7espontânea e distraída que eu disse com naturalidade porque senti no momento − e depois 3esqueci.
Tenho uma amiga que certa vez ganhou um canário, e o canário não cantava. Deram-lhe receitas para fazer o canário cantar; que falasse com ele, cantarolasse, batesse alguma coisa ao piano; que pusesse a gaiola perto quando trabalhasse em sua máquina de costura; que arranjasse para lhe fazer companhia, algum tempo, outro canário cantador; até mesmo que ligasse o rádio um pouco alto durante uma transmissão de jogo de futebol... mas o canário não cantava.
Um dia a minha amiga estava sozinha em casa, distraída, e assobiou uma pequena frase melódica de Beethoven − e o canário começou a cantar alegremente. Haveria alguma 8secreta ligação entre a alma do velho artista morto e o pequeno pássaro cor de ouro?
2Alguma coisa que eu disse distraído − talvez palavras de algum poeta antigo − foi 10despertar melodias esquecidas dentro da alma de alguém. Foi como se a gente soubesse que de repente, num reino muito distante, uma princesa muito triste tivesse sorrido. E isso fizesse bem ao coração do povo; iluminasse um pouco as suas pobres choupanas e as suas remotas esperanças.
RUBEM BRAGA PROENÇA FILHO, Domício (org.). Pequena antologia do Braga.
Rio de Janeiro: Record, 1997.
Alguma coisa que eu disse distraído − talvez palavras de algum poeta antigo − foi despertar melodias esquecidas dentro da alma de alguém. (ref.2)
O cronista revela que sua fala ou escrita pode conter algo escrito por “algum poeta antigo”.
Ao fazer essa revelação, o cronista se refere ao seguinte recurso