Texto 2
O conto que vem a seguir é classificado como fantástico. O conto fantástico se constitui de uma narrativa em que se chocam o plano do natural e o plano do sobrenatural (vocábulo que indica somente o que não é natural, não tem conotação religiosa). Nesse conflito, o âmbito do sobrenatural invade o âmbito do natural, geralmente desestruturando-o. O desfecho de uma narrativa fantástica não deve proporcionar, ao contrário do desfecho da narrativa de mistério, um esclarecimento, no texto, para o fato sobrenatural.
A LUA
“Seja aquela uma noite solitária, e não digna de louvor.” (Jó, III, 7)
Nem luz, nem luar. O céu e as ruas
apareciam escuros, prejudicando, de certo
modo, os meus desígnios. Sólida, porém, era a
[70] minha paciência e eu nada fazia senão vigiar
os passos de Cris. Todas as noites, após o
jantar, esperava-o encostado ao muro de sua
residência, despreocupado em esconder-me ou
tomar qualquer precaução para fugir aos seus
[75] olhos, pois nunca se inquietava com o que
poderia estar se passando em torno dele. A
profunda escuridão que nos cercava e a
rapidez com que, ao sair de casa, ganhava o
passeio jamais me permitiram ver-lhe a
[80] fisionomia. Resoluto, avançava pela calçada,
como se tivesse um lugar certo para ir. Pouco
a pouco, os seus movimentos tornavam-se
lentos e indecisos, desmentindo-lhe a
determinação anterior. Acompanhava-o com
[85] dificuldade. Sombras maliciosas e traiçoeiras
vinham ao meu encontro, forçando-me a
enervantes recuos. O invisível andava pelas
minhas mãos, enquanto Cris, sereno e
desembaraçado, locomovia-se facilmente. Não
[90] parasse ele repetidas vezes, impossível seria a
minha tarefa. Quando vislumbrava seu vulto,
depois de tê-lo perdido por momentos,
encontrava-o agachado, enchendo os bolsos
internos com coisas impossíveis de serem
[95] distinguidas de longe.
Na volta, de madrugada, Cris ia retirando
de dentro do paletó os objetos que colhera na
ida e, um a um, jogava-os fora. Tinha a
impressão de que os olhava com ternura antes
[100] de livrar-se deles.
***
Alguns meses decorridos, os seus passeios
obedeciam ainda a uma regularidade
constante. Sim, invariável era o trajeto
seguido por Cris, não obstante a aparente falta
[105] de rumo com que caminhava. Atingia a zona
suburbana da cidade, onde os prédios eram
raros e sujos. Somente estacava ao deparar
uma casa de armarinho, em cuja vitrina,
forrada de papel crepom, encontrava-se
[110] permanentemente exposta uma pobre boneca.
Tinha os olhos azuis e um sorriso de massa.
***
Uma noite — já me acostumara ao negro
da noite — constatei, ligeiramente
surpreendido, que os seus passos não nos
[115] conduziriam pelo itinerário da véspera. (Havia
algo que ainda não amadurecera o suficiente
para sofrer tão súbita ruptura.)
Nesse dia, o andar firme, seguiu em linha
reta. Atravessou o centro urbano, deixou para
[120] trás a avenida em que se localizava o comércio
atacadista. Apenas se demorou uma vez —
assim mesmo momentaneamente — defronte
a um cinema, no qual meninos de outros
tempos assistiam filmes em série. Fez menção
[125] de comprar entrada, o que deveras me
alarmou. Contudo, sua indecisão foi breve e
prosseguiu a caminhada. Enfiou-se pela rua do
meretrício, parando a espaços, diante dos
portões, espiando pelas janelas, quase todas
[130] muito próximas do solo.
Em frente a uma casa baixa, a única da
cidade que aparecia iluminada, estacionou
hesitante. Tive a impressão de que aquele
seria o instante preciso, pois, se Cris
[135] retrocedesse, não lograria outra oportunidade.
Corri para seu lado e, sacando do punhal,
mergulhei-o nas suas costas. Sem um gemido
e o mais leve estertor, caiu no chão. Do seu
corpo magro saiu a lua. Uma meretriz que
[140] passava, talvez movida por impensado gesto,
agarrou-a nas mãos, enquanto uma garoa de
prata cobria a roupa do morto. A mulher,
vendo o que sustinha entre os dedos, se
desfez num pranto convulsivo. Abandonando a
[145] lua, que foi varando o espaço, ela escondeu a
face no meu ombro. Afastei-a de mim. E,
abaixando-me, contemplei o rosto de Cris. Um
rosto infantil, os olhos azuis. O sorriso de
massa.
Murilo Rubião. Contos reunidos. p. 133-135.
O andar firme e em linha reta em certa noite; a chegada à rua do meretrício; as paradas diante dos portões e as espiadelas pelas janelas são ações que permitem afirmar que Cris