Texto 1
Pessoas habitadas
[1] Estava conversando com uma amiga, dia
desses. Ela comentava sobre uma terceira
pessoa, que eu não conhecia. Descreveu-a
como sendo boa gente, esforçada, ótimo
[5] caráter. "Só tem um probleminha: não é
habitada". Rimos. Uma expressão coloquial na
França - habité‚ - mas nunca tinha escutado
por estas paragens e com este sentido.
Lembrei-me de uma outra amiga que, de forma
[10] parecida, também costuma dizer "aquela ali
tem gente em casa" quando se refere a
pessoas que fazem diferença.
Uma pessoa pode ser altamente confiável,
gentil, carinhosa, simpática, mas, se não é
[15] habitada, rapidinho coloca os outros pra
dormir. Uma pessoa habitada é uma pessoa
possuída, não necessariamente pelo demo,
ainda que satanás esteja longe de ser má
referência. Clarice Lispector certa vez escreveu
[20] uma carta a Fernando Sabino dizendo que
faltava demônio em Berna, onde morava na
ocasião. A Suíça, de fato, é um país de contos
de fada onde tudo funciona, onde todos são
belos, onde a vida parece uma pintura, um
[25] rótulo de chocolate. Mas falta uma ebulição que
a salve do marasmo.
Retornando ao assunto: pessoas habitadas
são aquelas possuídas por si mesmas, em
diversas versões. Os habitados estão
[30] preenchidos de indagações, angústias,
incertezas, mas não são menos felizes por
causa disso. Não transformam suas
"inadequações" em doença, mas em força e
curiosidade. Não recuam diante de
[35] encruzilhadas, não se amedrontam com
transgressões, não adotam as opiniões dos
outros para facilitar o diálogo. São pessoas que
surpreendem com um gesto ou uma fala fora
do script, sem nenhuma disposição para serem
[40] bonecos de ventríloquos. Ao contrário,
encantam pela verdade pessoal que defendem.
Além disso, mantêm com a solidão uma relação
mais do que cordial.
Então são as criaturas mais incríveis do
[45] universo? Não necessariamente. Entre os
habitados há de tudo, gente fenomenal e
também assassinos, pervertidos e demais
malucos que não merecem abrandamento de
pena pelo fato de serem, em certos aspectos,
[50] bastante interessantes. Interessam, mas
assustam. Interessam, mas causam dano. Eu
não gostaria de repartir a mesa de um
restaurante com Hannibal Lecter, "The
Cannibal", ainda que eu não tenha dúvida de
[55] que o personagem imortalizado por Anthony
Hopkins renderia um papo mais estimulante do
que uma conversa com, sei lá, Britney Spears,
que só tem gente em casa porque está grávida.
Que tenhamos a sorte de esbarrar com
[60] seres habitados e ao mesmo tempo
inofensivos, cujo único mal que possam fazer
seja nos fascinar e nos manter acordados uma
madrugada inteira. Ou a vida inteira, o que é
melhor ainda.
MEDEIROS, Martha. In: Org. e Int. SANTOS, Joaquim Ferreira dos. As Cem Melhores Crônicas Brasileiras. Objetiva, 324-325.
Considere o excerto “Estava conversando com uma amiga, dia desses” (linhas 1-2), e o que se diz sobre ele.
I. Tem-se uma locução verbal de gerúndio – estava conversando –, em que estava é o verbo auxiliar e conversando é o verbo principal.
II. O verbo auxiliar, no presente exemplo, empresta um matiz semântico novo ao verbo principal.
III. Do ponto de vista aspectual, estava conversando não é o mesmo que conversava. Em estava conversando, a ideia de ação verbal em curso é mais forte do que em conversava. Essa constatação é importante principalmente na leitura de um texto literário, que pode ter em cada elemento uma carga expressiva a mais.
Está correto o que se diz em