Texto
Duelo antes da noite
[1] No caminho a menina pegou uma pedra e
atirou-a longe, o mais que pôde. O menino
puxava a sua mão e reclamava da vagareza da
menina. Deviam chegar até a baixa noite a
[5] Encantado, e o menino sabia que ele era
responsável pela menina e deveria manter uma
disciplina. Que garota chata, ele pensou. Se eu
fosse Deus, não teria criado as garotas, seria
tudo homem igual a Deus. A menina sentia-se
[10] puxada, reclamada, e por isso emitia uns sons de
ódio: graças a Deus que eu não preciso dormir
no mesmo quarto que você, graças a Deus que
eu não vou morar nunca mais com você. Vamos
e não resmunga, exclamou o menino. E o sol já
[15] não estava sumindo? Isso nenhum dos dois
perguntava porque estavam absortos na raiva de
cada um. A estrada era de terra e por ela poucos
passavam. Nem o menino nem a menina
notavam que o sol começava a se pôr e que os
[20] verdes dos matos se enchiam cada vez mais de
sombras. Quando chegassem a Encantado o
menino poria ela no Opala do prefeito e ela
nunca mais apareceria. Ele não gosta de mim,
pensou a menina cheia de gana. Ele deve estar
[25] pensando: o mundo deveria ser feito só de
homens, as meninas são umas chatas. O menino
cuspiu na areia seca. A menina pisou sobre a
saliva dele e fez assim com o pé para apagar o
cuspe.
[30] Até que ficou evidente a noite. E o menino
disse a gente não vai parar até chegar em
Encantado, agora eu proíbo que você olhe pros
lados, que se atrase. A menina não queria chorar
e prendia-se por dentro porque deixar arrebentar
[35] uma lágrima numa hora dessas é mostrar muita
fraqueza, é mostrar-se muito menina. E na curva
da estrada começaram a aparecer muitos
caminhões apinhados de soldados e a menina
não se conteve de curiosidade. Para onde vão
[40] esses soldados? — ela balbuciou. O menino
respondeu ríspido. Agora é hora apenas de
caminhar, de não fazer perguntas, caminha! A
menina pensou eu vou parar, fingir que torci o
pé, eu vou parar. E parou. O menino sacudiu-a
[45] pelos ombros até deixá-la numa vertigem
escura. Depois que a sua visão voltou a adquirir
o lugar de tudo, ela explodiu chamando-o de
covarde. Os soldados continuavam a passar em
caminhões paquidérmicos. E ela não chorava,
[50] apenas um único soluço seco. O menino gritou
então que ela era uma chata, que ele a deixaria
sozinha na estrada que estava de saco cheio de
cuidar de um traste igual a ela, que se ela não
soubesse o que significa traste, que pode ter
[55] certeza que é um negócio muito ruim. A menina
fez uma careta e tremeu de fúria. Você é o
culpado de tudo isso, a menina gritou. Você é o
único culpado de tudo isso. Os soldados
continuavam a passar.
[60] Começou a cair o frio e a menina tiritou
balançando os cabelos molhados, mas o menino
dizia se você parar eu te deixo na beira da
estrada, no meio do caminho, você não é nada
minha, não é minha irmã, não é minha vizinha,
[65] não é nada.
E Encantado era ainda a alguns lerdos
quilômetros. A menina sentiu que seria bom se o
encantado chegasse logo para se ver livre do
menino. Entraria no Opala e não olharia uma
[70] única vez pra trás para se despedir daquele
chato.
Encantado apareceu e tudo foi como o
combinado. Doze e meia da noite e o
Opala esperava a menina parado na frente da
[75] igreja. Os dois se aproximaram do Opala tão
devagarinho que nem pareciam crianças. O
motorista bigodudo abriu a porta traseira e
falou: pode entrar, senhorita. Senhorita... o
menino repetia para ele mesmo. A menina se
[80] sentou no banco traseiro. Quando o carro
começou a andar, ela falou bem baixinho: eu
acho que vou virar a cabeça e olhar pra ele com
uma cara de nojo, vou sim, vou olhar. E olhou.
Mas o menino sorria. E a menina não resistiu e
[85] sorriu também. E os dois sentiram o mesmo nó
no peito.
(NOLL, João Gilberto. In: Romances e contos reunidos. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 690-692. Texto adaptado.)
Assinale a opção em que, sem mudar o sentido do enunciado abaixo destacado, transformou-se o discurso direto no discurso indireto.
“Até que ficou evidente a noite. E o menino disse a gente não vai parar até chegar em Encantado, agora eu proíbo que você olhe pros lados, que se atrase.”(linhas 30-33)