Explicaê

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QUERIDO ÉRICO

Lygia Fagundes Telles

 

[1] Érico Veríssimo, meu querido: 

 

  Tão prontamente aceitei o convite para  

escrever uma página sobre você, com tanta  

alegria fui dizendo sim que em seguida nem  

[5] pude me lamentar pelo que paguei — pelo que  

tenho pago sempre por essa minha face  

arrebatada e fácil no sentido de não calcular.  

Não prever os cipós nos quais acabo me  

enrolando todas as vezes que saio do meu  

[10] gênero e faço outra coisa que não seja  

nitidamente a minha ficção. Fico insegura.  

Gauche. E então? Medo de ser pedante. Medo  

de ser sentimental. Aceitam os senhores da  

Globo um conto com Érico na pele de  

[15] personagem principal? – tive vontade de  

perguntar. 

  Como descobrir a palavra exata, num  

depoimento tão pessoal, sem tocar nas  

detestáveis pontas que pareciam me aguardar  

[20] com a implacabilidade do monstro de duas  

cabeças desafiando o viajante na  

encruzilhada? A cabeça da direita — a da  

razão — soltando fogo e fumo pelas narinas, a  

cabeça da esquerda — a do coração —  

[25] soltando a mesma massa espessa de fumaça  

e chamas, tão perigosas quanto as da sua  

irmã gêmea. Nem possessa nem lúcida. 

  Sentei-me diante da folha em branco,  

tirei do copo de pedra minha caneta Bic e  

[30] fiquei olhando, através da transparência  

plástica, a veia estática de tinta vermelha — 

sangue do pensamento ainda não pensado. E  

então? — perguntei-me ainda naquele estado  

de perplexidade que me faz crepúsculo, nem  

[35] dia nem noite, mas uma coisa ambígua à  

espera do milagre de uma definição. A caneta  

plena e eu oca. E essa ideia do conto? Hein?  

Não serve um conto?... 

  Nem pedante nem sentimental, que ele  

[40] não merece isso, repeti e fiquei sorrindo,  

porque nesse instante senti que você sorriu  

também. O sorriso foi se transformando num  

riso lento e descontraído, sem nenhuma  

ironia, apenas divertido. Rimos juntos  

[45] enquanto tomei um café e acendi meu  

cigarro: você tem razão, Érico, por que a 

palavra exata? Lá sei por onde andará a  

palavra exata, tão melhor usar nosso habitual  

diálogo, testemunho de que não só a arte é  

[50] diálogo, mas principalmente a amizade. E  

como amizade também é memória, quero me  

estender à margem do rio do Passado Mais  

que Perfeito e ficar olhando a correnteza com  

a mesma antiga voz e a mesma cor, em meio  

[55] do alarido delirante do presente [...]. Sou raiz  

que se apega e sou folha que se abandona  

nessa evocação orientada apenas pela terna  

vigilância de quem escreve a um amigo com a  

espontaneidade de poder dizer lá no alto: meu  

[60] querido. 

  Érico Veríssimo, meu querido, é manhã e  

estamos no ano de 1943. [...] Concorri à vaga  

da Academia de Letras da escola [...] e a  

primeira coisa que me ocorreu fazer foi  

[65] convidar você e Cecília Meireles para uma  

conferência na nossa Academia. [...] 

  No dia da sua chegada, não pudemos  

sequer ir buscá-lo no aeroporto. [...] Não,  

ninguém tinha carro nem nada, os  

[70] motorizados da Faculdade não liam.  

  Sugeri que lhe déssemos uma pequena  

lembrança após a conferência [...] E,  

terminada a sessão, não seria interessante  

oferecer um uísque ao romancista? [...] Em  

[75] que casa seria essa reunião? 

  Lembrei-me de telefonar a Mário de  

Andrade: estava viajando. Fomos procurar  

Oswald de Andrade, que nos recebeu com o  

maior calor, mas esfriou quando um colega  

[80] deu sua baixaria: já que o Mário não estava  

em São Paulo, quem sabe ele, Oswald,  

poderia?... Uma reuniãozinha simpática, com  

uma dúzia de pessoas, quem sabe... Não  

podia, não. Estava fortemente implicado com  

[85]  o gaúcho, que tinha dois defeitos  

irremovíveis: primeiro, não se definia  

politicamente, quer dizer, não caíra nos  

braços do partido quando devidamente  

sondado. “Mas é possível uma coisa dessas?  

[90] Num momento como este que atravessamos,  

um escritor ficar indiferente? Apático?! E  

bebemos mais um copo de cerveja, “enquanto  

Oswald passava ao segundo item da sua  

implicância. Então desatamos a rir, porque era  

[95] mesmo engraçado, aquilo de ele se invocar  

com romancista por ser um romancista feliz.  

“Ele é feliz demais, não pode! Vende os livros,  

joga tênis e se casou, e continua casado a  

vida inteira com uma mulher só, é abusar! Ele  

[100] ainda está casado com a mesma?”, perguntou  

e, antes mesmo de ouvir a resposta, explodiu:  

“O dia em que ele comer o pão que o diabo  

amassou, nesse dia escreverá um grande  

livro, e eu lhe oferecerei uma festa. Mas antes  

[105] tem que ficar desesperado, rasgado, preso e  

corneado até pelo cachorro”. 

  Artista é todo aquele que bebe fel e  

querosene — concluí, enquanto assistia a uma  

aula de Legislação Social, onde sempre me  

[110] entregava a pensamentos sobre Deus, a arte  

e a morte, etecetera. Esse e outros  

preconceitos adquiri e perdi com o tempo: foi  

na carne que senti, um dia, o julgamento de 

um crítico, que ficou uma fúria comigo porque  

[115] eu escrevia coisas mórbidas e em seguida ia  

fazer ginástica e jogar voleibol na Associação  

Cristã dos Moços. Mas como é que pode? 

  “O bom romancista é ao mesmo tempo  

um anjo e um cavalão, trabalha com as asas  

[120] (as coisas mais finas, mais espirituais, mais  

belas) e com as patas, isto é, trabalho braçal,  

a resistência física e a paciência cavalar. Mas  

confio acima de tudo no Instinto. Que o anjo  

trabalhe montado no cavalo. E que no fim  

[125] desapareça de todo a marca das patas e fique  

apenas a luz das asas. Bonito, não?” (Porto  

Alegre, 29 de agosto de 1950.) 

  Você dizia que não gostava nem de  

tango, nem de gato, nem de cachorro. Mas  

[130] gostava de Bach, de criança e de cavalo. Eram  

os primeiros elementos de um gaúcho  

tranquilo que não dançava tango, mas tinha a  

cara do próprio. De um gaúcho discreto, de  

fala baixa, riso breve e fácil comunicação com  

[135] o público, como ficou provado naquela noite  

de invierno, quando nos disse que acreditava,  

acima de tudo, na trilogia tão batida da  

verdade, da bondade e da beleza. Durante um  

dos debates que promovemos, um estudante  

[140] lhe fez uma pergunta, não me lembro da  

pergunta, mas me lembro da sua resposta:  

“sou apenas um contador de histórias”. 

  Fiquei meio chocada: estava no começo  

da carreira e minha autoconfiança e meu  

[145] orgulho não aceitavam esse tipo de confissão.  

Um simples contador de histórias? 

  A um entrevistador que lhe fazia  

perguntas agudíssimas William Faulkner  

respondeu de repente; “Sou fazendeiro,  

[150] moço”. O entrevistador um crítico formado em  

Harvard, ficou histérico: “Escritor, diga  

escritor!” Então ele sorriu e se levantou para  

ir embora: “Sou fazendeiro”. Mas nessa época  

eu ainda não tinha lido essa entrevista, que  

[155] poderia ter me impressionado. Nessa época,  

eu ainda tateava no ofício: tamanho  

despojamento não fazia mesmo sentido diante  

da minha ambição. 

  É difícil encontrar uma criatura tão  

[160] coerente no seu comportamento de absoluta  

fidelidade a si próprio e aos outros, aqueles  

nos quais você acreditou. Sua gente. Seus  

amigos. Sua música. Seus livros — ah, com  

que amor você se devotou ao seu doce  

[165] mundo. Já naquele distante 1943 você parecia  

saber que o importante é cuidar da rosa do  

nosso jardim. Sem, contudo, se ausentar sem  

se omitir. E em algum momento você ficou  

indiferente aos problemas do nosso povo? Ao  

[170] sofrimento desse povo? Aí estão os seus  

livros, através dos quais você se manifesta,  

participa deste tempo e deste vento. Sua voz  

transparece na boca das personagens,  

centenas de personagens falando alto da sela  

[175] de um cavalo, da poltrona de uma sala  

governamental, de um coreto. Falando baixo  

do catre de uma prisão, que nas prisões se  

fala em baixo tom. A injustiça — eis o que  

mais fundamente parece tocá-lo —, a injustiça  

[180] e todo o seu leque maldito, que vai da  

servidão à tortura. 

 

Assinale a opção em que NÃO há metáfora.

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