Explicaê

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O MEDO DO SILÊNCIO E O VÍCIO DA INFORMAÇÃO DESENFREADA

Julián Fuks

 

    Não sou o único, suspeito que seja

um entre milhares, um entre milhões, a

ocupar de palavras cada instante vago, a

fugir do silêncio, do vazio, do marasmo.

[05] Faço isso contra mim mesmo, obedeço ao

meu vício, me saturo, me embriago de

linguagem. Entro no elevador e já apalpo o

bolso à procura do celular, para que me

acompanhe por um minuto até que a porta

[10] se abra. Se a notícia é forte, se a conversa

é enfática, caminho pela rua dividindo o

olhar entre a tela e a calçada, e espero na

fila do mercado absorvido em comentários

erráticos de pessoas que conheço mal.

[15] Durante todo o trajeto, perdi rostos,

pensamentos, paisagem, fui uma ausência

entre ausências no mundo que reputo real.

    A princípio a novidade me pareceu

um disparate: poderíamos agora acelerar o

[20] som dos programas que ouvimos, dos

áudios que recebemos. Quem teria tanta

pressa, cheguei a me perguntar, quem

aceitaria deturpar as vozes dos amigos,

fazer de suas vagarezas habituais um

[25] discurso impaciente, ansioso, seco?

Brinquei com as minhas filhas de acelerar

as nossas vozes, de falar tão rápido quanto

podíamos e em seguida ouvir nossas

asperezas, nossos atropelos. E então a

[30] graça foi se perdendo pelos dias em sua

presteza, o que era insólito se fez ordinário,

e passei a ouvir quase tudo apressado, com

um módico incremento de ritmo e de raiva.

Adensei de informações a minha existência,

[35] reduzi ao mínimo meu silêncio, meu tédio,

minha inteligência.

    Meu vício é por notícias, por

análises, por debates, meu vício é por

imagens improváveis, meu vício é por

[40]comentários jocosos, piadas de

circunstância, risos fáceis. Nunca estive tão

abastecido de produtos que possam saciar

essa ânsia, nunca dispus de uma

comunicação tão irrefreável, e ainda assim

[45] não me sacio. Dormir é calar a profusão de

palavras, acordar é voltar a aceitá-la.

Guardo consciência de que tudo isso não

está me preenchendo de nada, de que

estou me esvaziando, estou hipertrofiado de

[50] informações, atrofiado de interioridade. Há

dias em que me escuto muito mal, quase

não me escuto com tanto ruído que me

invade.

    Pouca paciência me resta para o

[55] cinema que antes me encantava. Vejo um

homem cruzando um deserto, atravessando

uma praça, seguindo pelo corredor de um

hotel, e anseio para que apresse o passo,

para que enfim a cena comece, para que se

dê o diálogo. É como se quisesse optar, nos

[60] mesmos filmes que admirava, nos filmes

que ainda admiro, por uma nova

velocidade, uma que não me obrigue à

assimilação lenta de cada detalhe. Não é

[65] um desejo harmônico, não é nada unânime

entre os muitos que sou. Sou impaciente

com a minha própria impaciência, luto

contra mim para recuperar a tranquilidade,

para voltar a ser um sujeito de pálpebras

[70] baixas disposto à divagação e à

contemplação desarmada.

    Penso no tempo em que a

incomunicação ditava o sentido do cinema,

da literatura, das artes. Víamos

[75] contundência e beleza no marasmo, víamos

um homem em estado de solidão e

pensávamos capturar seu desamparo, seu

desconsolo, sua profundidade. Hoje a dor

desse homem se converteu num tédio que

[80] já não suportamos. Samuel Beckett virou

tema para estudiosos, suas esperas falam

pouco aos ouvidos ansiosos, a

incomunicação não nos comunica mais

nada. O autor que quiser dar conta deste

[85] tempo atordoante terá que abrir espaço aos

excessos da comunicação, fazer reverberar

em sua obra essas vozes que nunca calam,

nunca cansam de falar, em ritmo agora

turbinado.

    [90] E, no entanto, o que procuro na

literatura é o contrário, é nela que me

abrigo do ruído, com suas palavras

reinstauro o silêncio necessário. No

intervalo entre dois versos, entre duas

[95] linhas de um romance bom, me desvio para

os meus próprios pensamentos e é como se

os reencontrasse, à minha espera, calmos,

imperturbáveis. Geralmente, querem me

falar sobre coisas muito diferentes dessa

[100] existência vertiginosa, seu tempo não é o

presente, outro é seu horizonte, outra sua

cadência. Quando o pensamento se

emancipa do vício, o passado é vasto, o

futuro é franco, o mundo não se limita a

[105] esse caos rumoroso que nos consome e nos

debilita.

    O último pensamento me conduziu a

uma nostalgia: nostalgia do silêncio, da

conversa ineficiente, do encontro vadio. Dos

[110] amigos que pouco vejo neste mundo de

atropelos, das vozes queridas que acelerei

para meu desprazer. De vocês, não quero

mais a informação certeira, não quero a

eficácia comunicativa. Quero voltar a ouvir

[115]suas pausas, suas hesitações, seus

descaminhos, quero voltar a adivinhar o

rumo de seus juízos. Preciso de vocês para

combater o meu vício, para me munir de

palavras ociosas e indolentes. Aguardo

[120] áudios que me adormeçam, que me

despertem.

Disponível em https://www.uol.com.br/ecoa/colunas/julianfuks/2021/08/21/o-medo-do-silencio-e-o-vicio-dainformacao-desenfreada.htm. Acesso em 01 de setembro de 2021.

No texto, o autor utiliza diversas palavras com o mesmo processo de formação, como se constata em: “impaciente” (linha 66); “impaciência” (linha 67); “reinstauro” (linha 93); “reencontrasse” (linha 97); “desprazer” (linha 112).

 

Esse processo de formação de palavras recebe o nome de derivação

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