Explicaê

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Texto 1

 

O TEMPO 

 

[1]   Sobraram de tudo, com mais legendas,  

o palacete do barão, ruínas, o sobrado do  

fisco, onde se cobrava o quinto do rei, e a  

capela, que foi promessa de mulher-dama,  

[5] convertida após amealhar ouro e diamantes  

dos forasteiros que chegavam, sendo que  

essa mesma capela é hoje ninho de  

morcegos e corujas. Sobraram também as  

velhas casas de beirais e cornijas, mais  

[10] sobrados, sem portas nem janelas, olhos  

vazados: fixam o tempo e a eternidade,  

parados na tarde. Restaram ainda as velhas  

de muita velhice. Elas pitam os cachimbos,  

comem as próprias bocas e trazem  

[15] lembranças do passado.  

  - Muita coisa a contar, seu moço.  

Histórias muitas.  

  Foi chão de mineração, com o braço de  

rio, a serra, com veios de ouro, o  

[20] pedregulho solto em cor de ferro ou  

ferrugem. No tempo bem mais antigo,  

muitos escravos, nus da cintura para cima e  

de calças arregaçadas, mergulhavam as  

bateias e peneiravam o cascalho. Onda de  

[25] aventureiros. Alguns estrangeiros. Abriram  

galerias na serra, que hoje são também  

moradas de morcegos, a picareta seguia o  

filão de ouro. Crimes e iniquidades: o  

alemão de barbas e botas, que apareceu  

[30] morto e roubado no alpendre da casa; o  

preto Ludovico, que, por suspeita, foi  

obrigado a tomar dose dupla de pinhão,  

para expelir o diamante raro. O negro, com  

licença da palavra, se desfazia em merda e  

[35] suor, o feitor catando a pedra no chão com  

a ponta da vara.  

  Dinheiro abundante para gasto e  

divertimento de todos. O bar, as cartas, a  

cerveja e as mulheres. Fandangos e bumbameu-

[40] boi. Também as missões de expurgo,  

quando chegava Frei Nemésio, casando  

amancebados e purificando menino pagão,  

os pecados todos condenados em sermão de  

fogo pelas barbas venerandas de Frei  

[45] Nemésio, e perdoados enfim com a grande  

procissão de velas.  

  - Senhor Deus, misericórdia.  

  E a procissão de velas:  

  - Misericórdia.  

[50]   Outras festas havia. Cavalhadas ou  

justas, por iniciativa do próprio barão, que  

se apresentava no palanque em ordem de  

comando e respeito, o cebolão de ouro, com  

corrente pesada, no bolso do colete.  

[55]   De todos os crimes, o de maior força foi  

o desse mesmo barão: viúvo, teve relações  

de incesto com a filha. Daí o abandono de  

tudo. O palacete dele em ruínas, coberto  

pela erva daninha, refúgio de cobras e  

[60] lagartos.  

  - Que fortes são os poderes de Deus.  

  - E diga.  

  Por maldição do crime e também pelo  

braço de rio que secou e o veio de ouro que  

[65] se perdeu, tudo foi entrando em abandono.  

As levas de homens que se retiravam da  

noite para o dia. O vazio dos arruados, os  

armazéns que se fechavam. Havia muito  

cerrara as portas o sobrado do fisco para a  

[70] cobrança do quinto. Menino que se fizesse  

rapaz, por insinuação de um ou outro rádio  

de pilhas ou viandante raro que por ali  

passasse, dava para emigrar ou fugir, ou  

ficava atoleimado, se escondendo de pessoa  

[75] estranha, sem saber dar respostas.  

  Bichos.  

  E o mundo se fez silêncio, espaço e  

tempo infinitos, com aquelas velhas casas  

de olhos vazados, onde ruminavam cabras e  

[80] carneiros, o telheiro do mercado arriado. Por  

força de alguma vida, restou, na esquina, a  

venda de Seu Aniceto, também viveiro de  

ratos em correria pelas prateleiras, com  

uma ou outra garrafa empoeirada.  

[85]   Por último começou a parar por ali o  

caminhão do Nozinho, que traz de longe  

carregamento de minério descoberto em  

mina nova. Nozinho descobriu, entre as  

velhas, menina-moça, que quer ir com ele  

[90] na boleia. O caminhão chega em grande  

alegria de buzina e rádio aberto, as  

bandeirinhas coloridas. Todos acorrem, e  

Nozinho, por ele mesmo, é de muita prosa,  

enquanto salta, escarra no chão e tange  

[95] com o pé o cachorro magro. Então Seu  

Aniceto, em nome de todos, talvez, e mais  

no seu interesse e ainda porque era fim de  

dezembro, supunha, pediu a Nozinho que  

lhe trouxesse o tempo marcado. É que  

[100] estavam perdidos dentro do mundo, sem 

contagem de dia, mês ou ano, mas existindo  

dia e noite para a orientação de todos:  

  - Que dia é hoje, por exemplo?  

  - Quarta.  

[105]   Está aí, ninguém sabia.  

  E Nozinho, na viagem de volta, trouxe o  

Tempo em forma de calendário, não com  

fotografia de mulher nua, como gostava,  

mas com a estampa de Nossa Senhora das  

[110] Dores, o coração trespassado por sete setas,  

que era assim que apreciavam as velhas de  

muita velhice que comiam as próprias bocas  

e se arrimavam às paredes. 

(Moreira Campos. Obra completa: contos. p. 326-328.)

 

Há, no conto, alguns indícios textuais que levam o leitor a inferir uma mistura de vozes, isto é, a manifestação de outra ou outras vozes além da voz do narrador. Escreva V ou F, conforme o que está abaixo funcione ou não como pista dessa outra voz no texto em estudo. 

 

( ) O emprego do travessão nas linhas 16, 47, 49, 61, 62, 103 e 104.

( ) A referência a detalhes de episódios muito específicos.

( ) As expressões com licença da palavra, (o negro) se desfazia em merda e suor (linhas 33 a 35); o adjetivo atoleimado (linha 74).

( ) O juízo de valor expresso pelo substantivo Bichos, na linha 76.

( ) O estilo deste excerto: o mundo se fez silêncio, espaço e tempo infinitos, com aquelas velhas casas de olhos vazados, onde ruminavam cabras e carneiros, o telheiro do mercado arriado. (linhas 77 a 80).

 

Está correta, de cima para baixo, a sequência:

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