O tempo em que o mundo tinha a nossa idade
Nesse entretempo, ele nos chamava para escutarmos seus imprevistos improvisos. As estórias
dele faziam o nosso lugarzinho crescer até ficar maior que o mundo. Nenhuma narração tinha fim, o
sono lhe apagava a boca antes do desfecho. Éramos nós que recolhíamos seu corpo dorminhoso.
Não lhe deitávamos dentro da casa: ele sempre recusara cama feita. Seu conceito era que a morte
[5] nos apanha deitados sobre a moleza de uma esteira. Leito dele era o puro chão, lugar onde a
chuva também gosta de deitar. Nós simplesmente lhe encostávamos na parede da casa. Ali ficava
até de manhã. Lhe encontrávamos coberto de formigas. Parece que os insectos gostavam do suor
docicado do velho Taímo. Ele nem sentia o corrupio do formigueiro em sua pele.
- Chiças: transpiro mais que palmeira!
[10] Proferia tontices enquanto ia acordando. Nós lhe sacudíamos os infatigáveis bichos. Taímo nos
sacudia a nós, incomodado por lhe dedicarmos cuidados.
Meu pai sofria de sonhos, saía pela noite de olhos transabertos. Como dormia fora, nem dávamos
conta. Minha mãe, manhã seguinte, é que nos convocava:
- Venham: papá teve um sonho!
[15] E nos juntávamos, todos completos, para escutar as verdades que lhe tinham sido reveladas.
Taímo recebia notícia do futuro por via dos antepassados. Dizia tantas previsões que nem havia
tempo de provar nenhuma. Eu me perguntava sobre a verdade daquelas visões do velho,
estorinhador como ele era.
- Nem duvidem, avisava mamã, suspeitando-nos.
[20] E assim seguia nossa criancice, tempos afora. Nesses anos ainda tudo tinha sentido: a razão
deste mundo estava num outro mundo inexplicável. Os mais velhos faziam a ponte entre esses
dois mundos. (...)
Mia Couto Terra sonâmbula. São Paulo, Cia das Letras, 2007.
Este texto é uma narrativa ficcional que se refere à própria ficção, o que caracteriza uma espécie de metalinguagem.
A metalinguagem está melhor explicitada no seguinte trecho: