Explicaê

01

BICHO PAPÃO DA MINHA IMAGINAÇÃO

A gente tem muitos bichos na vida. Eu, como toda criança, tive meu bicho-papão particular, chamado medo.

    Bicho-papão aparecia nas horas mais escuras da noite, naquelas horas em que a cabeça da gente começa a imaginar besteiras, imaginar, imaginar, de repente o medo toma conta do mundo.

    Bicho-papão a gente inventa.

    O meu foi inventado por uma cozinheira gorda, chamada Guiomar. Guiomar (...) vivia contando histórias terríveis, de botar cabelo em pé. (...)

(...)

    Eu sei que, de tanto ouvir a cozinheira, criei meu Bicho-papão particular. Ele era assim: olhos cor de fogo, pés virados pra trás, soltava muita fumaça pelas ventas e era mula-sem-cabeça, além de pular num pé só e usar touca vermelha, fumar um cachimbo e, de vez em quando, parecer minha professora de matemática. Tinha vezes que Bicho-papão era ótimo, nem existia! Mas bastava ser noite de tempestade, lá vinha Bicho-papão vestido de lençol branco, casaco de padre, chapéu de freira, blusa de crochê e leque de plumas. Era realmente uma coisa impossível, não existia, era meu medo.

    Uma noite cismei que meu pai era o Bicho-papão. (...)

    Eu já estava deitada. Era uma noite escura. Papai estava conversando na sala, com visitas. De repente, pensei assim:

“O Bicho-papão está fingindo que é meu pai. Ele está lá na sala, conversando, enganando todo mundo, tomando a forma de meu pai, o danado! Mas não é meu pai, é o Bicho-papão! Pra tirar a dúvida, vou chamar ele pra vir aqui no meu quarto... se ele tiver pé de pato, em vez de ter pé de gente, é porque ele não é meu pai!”

    O vento batia na cortina branca, igual aos filmes de terror. Resolvi que preferiria dormir, sem saber da verdade. Chamar pra tirar a dúvida? Deus me livre.

    Lembrei de uma reza que Guiomar tinha me ensinado pra espantar todos os males do mundo. Era uma reza complicada, precisava rezar e dar uns pulinhos e umas voltas. Pra rezar aquilo seria necessário sair de debaixo do cobertor. Deus me acuda!

(...)

    Resolvi tomar coragem, mas o pavor não passava. Era preciso rezar a reza de Guiomar (...).

    Pulei da cama rápido, acendendo a luz de cabeceira. Sombras enormes projetavam-se nas paredes, a cortina continuava a dançar, enquanto o vento gemia lá fora: uuuuuuuuuuu!

Comecei a recitar a reza.

(...)

    Na exata hora em que eu estava dando o sétimo rodopio, meu pai entrou no quarto, pra ver que barulheira era aquela.      Foi entrar, eu pulei de volta na cama, dura de pavor. Seria meu pai, ou seria o Bicho-papão? Eu ainda não tinha terminado de rezar a reza, faltava completar o sétimo rodopio, depois rezar uma ave-maria.

(...)

    Papai aproximou-se para ajeitar meu cobertor. Eu, de olhar duro, sem espiar os pés dele. Com certeza eram de pato, virados para trás (...).

– Você precisa dormir, menina. Amanhã o colégio começa cedo.

    Resolvi espiar. Eu ia dar uma olhadinha rápida nos pés do meu pai, era só tomar coragem. Suava frio, tremia toda, apavorada.

    – Você está com frio?

    “Pronto! Ele perguntou isso só pra me soprar o fogo de suas ventas! Era a mula-sem-cabeça, fingindo ser papai. Tinha pé de pato, com certeza absoluta!”

    Tomei coragem, virei os olhos pra baixo pra espiar. Neste segundo, ele apagou a luz dizendo:

    – Boa noite.

Fiquei sem saber se era meu pai ou se era o Bicho-papão. (...)    ORTHOF, Sylvia. Os bichos que eu tive (memórias zoológicas). Rio de Janeiro: Salamandra, 1983. p. 30-32.


Ao ler a descrição do Bicho-papão, percebemos que ele possui características de alguns mitos do nosso folclore.


  1. a) Cite um desses mitos e escreva quais as características relacionadas a ele que foram herdadas pelo Bicho-papão.
  2. b) Por que, provavelmente, o Bicho-papão herdou características de mitos do nosso folclore?