No mundo dos animais
As relações entre os humanos e as demais espécies viventes têm merecido a atenção de escritores, artistas e intelectuais. Essas relações, que não primam pela ética, são o objeto de estudo da professora e escritora mineira Maria Esther Maciel.
Quando os estudos sobre ‘animais e literatura’ passaram a ser feitos de modo sistemático no Brasil?
Maria Esther Maciel: Só recentemente; antes, havia trabalhos esparsos. Além disso, a abordagem se circunscrevia à visão do animal como símbolo, metáfora ou alegoria do humano, mais restrita à análise textual. Hoje, percebe-se uma ampliação desse enfoque, que deixa os limites do texto literário para ganhar um viés transdisciplinar, em diálogo com a filosofia, biologia, antropologia, psicologia. Aliás, esse entrelaçamento de saberes em torno da questão animal cresceu em várias partes do mundo, propiciando a difusão de um novo campo de investigação crítica denominado 'estudos animais'. A literatura tem conquistado espaço importante nesse campo, graças sobretudo a escritores/pensadores como John M. Coetzee, John Berger e Jacques Derrida, que souberam aliar, de modo criativo, literatura, ética e política no trato da questão animal.
Como a senhora explica esse interesse crescente pelo tema?
Há um conjunto de fatores. Impossível não considerar as preocupações de ordem ecológica, que movem a sociedade contemporânea. Há também uma tomada de consciência mais explícita por parte de escritores, artistas e intelectuais dos problemas éticos que envolvem nossa relação com os animais e com o próprio conceito de humano. Além disso, a noção de espécie e a divisão hierárquica dos viventes têm provocado discussões ético-políticas relevantes, que acabam por contaminar as artes e a literatura. A isso se soma a tentativa, por parte dos humanos, de recuperar sua própria animalidade, que por muito tempo foi reprimida em nome da razão e do antropocentrismo.
Por que é importante para a humanidade refletir sobre a animalidade?
Ao refletir sobre a animalidade, a humanidade pode repensar o próprio conceito de humano e reconfigurar a noção de vida. Por muito tempo, nosso lado animal foi recalcado em nome da razão e de outros atributos tidos como próprios do homem. Quem ler os tratados de filosofia e teologia escritos ao longo dos séculos verá que a definição de humano e humanidade se forjou à custa da negação da animalidade humana e da exclusão/marginalização dos demais seres que compartilham conosco o que chamamos de vida. Acho que os humanos precisam se reconhecer animais para se tornarem verdadeiramente humanos.
É possível identificar modos diferentes de ‘explorar’ a figura do animal na produção literária?
Na literatura brasileira, podemos falar de três momentos incisivos. No primeiro, está Machado de Assis, que escreveu no auge do racionalismo cientificista do século 19, quando os princípios cartesianos já tinham legitimado no Ocidente a cisão entre humanos e não humanos, e os animais eram vistos como máquinas. No século 20, a partir dos anos 30, autores como Graciliano Ramos, João Alphonsus, Guimarães Rosa e Clarice Lispector marcam um novo momento, ao lidar, cada um a seu modo, com as relações entre homens e animais sob um enfoque libertário, manifestando cumplicidade com esses outros viventes e a recusa da violência contra humanos e não humanos. Já os escritores do final do século 20 e início do 21 lidam com a questão dos animais sob o peso de uma realidade marcada por catástrofes ambientais, extinção de espécies, experiências biotecnológicas, expansão das granjas e fazendas industriais etc.
Como a senhora vê o futuro dos animais?
Pelo jeito como as coisas andam, preocupo-me com a possibilidade de os animais livres desaparecerem da face da Terra. Ficariam apenas os bichos criados em reservas e cativeiros, os expostos em zoológicos, os ‘produzidos’ em granjas e fazendas industriais para viver uma vida infernal e morrer logo depois, além dos animais domésticos, adestrados e humanizados ao extremo.
Há quem diga que até mesmo estes estão fadados a desaparecer, dando lugar a animais-robôs, que já existem no Japão.
A humanidade tem destruído florestas, dizimado povos indígenas, exterminado espécies animais. Apesar da preocupação de ativistas com o destino do planeta, falta empenho político dos governos para frear essa destruição generalizada.
Minha utopia é que a humanidade possa um dia fazer mea-culpa em relação aos crimes já cometidos contra os índios, os animais, a natureza. Mas, pelo que vejo, essa questão continuará a ser um grande desafio ético e político para a nossa civilização.
Seus estudos sobre animalidade a influenciaram em seu modo de vida?
Não consigo desvincular o trabalho do meu modo de vida. Se cheguei ao tema dos animais, foi por causa do meu apreço por eles. Há anos não como carne, por causa da memória do tempo em que passava temporadas na fazenda do meu pai, no interior de Minas Gerais. Vivia perto de vacas, porcos, aves, cavalos, cachorros. Toda vez que via carne de vaca na mesa, me lembrava do olhar bovino. Já a visão da carne de porco me trazia a imagem dos porquinhos espertos e afetuosos com que eu brincava. Foi assim também com as aves, os coelhos e outros bichos. Como fui sempre muito tocada pelo olhar animal, decidi não comê-los mais. Ainda mantive peixes e frutos do mar, mas deixei de comer várias espécies ao saber de seus hábitos. Recuso também ovos de granja, em repúdio à situação absurda das aves nos espaços de confinamento das fazendas industriais. Meu projeto de vida, certamente influenciado por meus estudos, é parar de consumir também carne de peixe. Chegarei lá.
MACIEL, Maria Esther. No mundo dos animais. Entrevista a Roberto B. de Carvalho. Ciência Hoje, 21 nov. 2012. Disponível em <http://cienciahoje.uol.com.br>. Acesso em: 05 nov. 2013 (Texto Adaptado).
Segundo FIORIN & SAVIOLI (1997), a oração restritiva pressupõe que seu conteúdo se refira à parte dos elementos de um dado conjunto. Essa afirmativa está exemplificada em: