Explicaê

01

Luciana

 

Ouvindo rumor na porta da frente e os

passos conhecidos de tio Severino, Luciana

ergueu-se estouvada, saiu do corredor,

entrou na sala, parou indecisa, esperando

que a chamassem. Ninguém reparou nela.

Papai e mamãe, no sofá, embebiam-se na

palavra lenta e fanhosa de tio Severino,

homem considerável, senhor da poltrona. O

que ele dizia para a família tinha força de lei.

Luciana quis aproximar-se das pessoas

grandes, mas lembrou-se do que lhe tinha

acontecido na véspera. Andara com mamãe

pela cidade, percorrera diversas ruas,

satisfeita. Num lugar feio e escorregadio,

onde a água da chuva empoçava, resistira,

acuara e caíra no chão, sentara-se na lama,

esperneando e berrando. Em casa, antes de

tirar-lhe a camisa suja, mamãe lhe infligira

três palmadas enérgicas. Por quê? Luciana

passara o dia tentando reconciliar-se com o

ser poderoso que lhe magoara as nádegas.

Agora, na presença da visita, essa criatura

forte não anunciava perigo.

Luciana aproximou-se do sofá nas

pontas dos pés, imitando as mulheres que

usam sapato alto. Convidava a irmã para

brincar de moça, mas acabava arranjando-se

só. E lá ia ela remedando um pássaro que se

dispõe a voar, inclinada para a frente, os

calcanhares apoiados em saltos enormes e

imaginários. Assim aparelhada, chamava-se

D. Henriqueta da Boa-Vista.

Tio Severino era notável: vermelho,

tinha maçarocas brancas no rosto, o beiço e

o queixo rapados, a testa brilhante,

sobrancelhas densas e óculos redondos.

Entre os dentes amarelos, a voz escorria

pausada, nasal, incompreensível. Luciana

percebia as palavras, mas não atinava com a

significação delas. Rondou por ali um

instante, mas fatigou-se. E ia esgueirar-se

para o corredor, quando algumas sílabas da

conversa indistinta lhe avivaram a recordação

de outras sílabas vagas, largadas por um

moleque na rua. Repetiu bem alto as

palavras do moleque.

– Esta menina sabe onde o diabo dorme.

Luciana teve um deslumbramento. O

coraçãozinho saltou, uma alegria doida

encheu-a. Sentiu-se feliz e necessitou

desabafar com alguém. Cruzou a sala.

Espalhou as revistas e as bonecas, pôs-se a

dançar em cima delas. Regressou, muito

leve, boiando naquela claridade que a

envolvia e penetrava.

– Esta menina sabe onde o diabo dorme.

Tio Severino tinha feito uma revelação

extraordinária, e Luciana devia comportar-se

como pessoa que sabe onde o diabo dorme.

Ouvindo rumor na porta da frente e os

passos conhecidos de tio Severino, Luciana

ergueu-se estouvada, saiu do corredor,

entrou na sala, parou indecisa, esperando

que a chamassem. Ninguém reparou nela.

Papai e mamãe, no sofá, embebiam-se na

palavra lenta e fanhosa de tio Severino,

homem considerável, senhor da poltrona. O

que ele dizia para a família tinha força de lei.

Luciana quis aproximar-se das pessoas

grandes, mas lembrou-se do que lhe tinha

acontecido na véspera. Andara com mamãe

pela cidade, percorrera diversas ruas,

satisfeita. Num lugar feio e escorregadio,

onde a água da chuva empoçava, resistira,

acuara e caíra no chão, sentara-se na lama,

esperneando e berrando. Em casa, antes de

tirar-lhe a camisa suja, mamãe lhe infligira

três palmadas enérgicas. Por quê? Luciana

passara o dia tentando reconciliar-se com o

ser poderoso que lhe magoara as nádegas.

Agora, na presença da visita, essa criatura

forte não anunciava perigo.

Luciana aproximou-se do sofá nas

pontas dos pés, imitando as mulheres que

usam sapato alto. Convidava a irmã para

brincar de moça, mas acabava arranjando-se

só. E lá ia ela remedando um pássaro que se

dispõe a voar, inclinada para a frente, os

calcanhares apoiados em saltos enormes e

imaginários. Assim aparelhada, chamava-se

D. Henriqueta da Boa-Vista.

Tio Severino era notável: vermelho,

tinha maçarocas brancas no rosto, o beiço e

o queixo rapados, a testa brilhante,

sobrancelhas densas e óculos redondos.

Entre os dentes amarelos, a voz escorria

pausada, nasal, incompreensível. Luciana

percebia as palavras, mas não atinava com a

significação delas. Rondou por ali um

instante, mas fatigou-se. E ia esgueirar-se

para o corredor, quando algumas sílabas da

conversa indistinta lhe avivaram a recordação

de outras sílabas vagas, largadas por um

moleque na rua. Repetiu bem alto as

palavras do moleque.

– Esta menina sabe onde o diabo dorme.

Luciana teve um deslumbramento. O

coraçãozinho saltou, uma alegria doida

encheu-a. Sentiu-se feliz e necessitou

desabafar com alguém. Cruzou a sala.

Espalhou as revistas e as bonecas, pôs-se a

dançar em cima delas. Regressou, muito

leve, boiando naquela claridade que a

envolvia e penetrava.

– Esta menina sabe onde o diabo dorme.

Tio Severino tinha feito uma revelação

extraordinária, e Luciana devia comportar-se

como pessoa que sabe onde o diabo dorme.

de saber. Descobriria o lugar onde o diabo

dorme. Dona Henriqueta da Boa-Vista se

largaria pelo mundo, importante, os

calcanhares erguidos, em companhia de

seres enigmáticos que lhe ensinariam a

residência do diabo. Mais tarde seu Adão a

embarcaria na carroça: – “Foi um dia uma

princesa bonita que tinha uma estrela na

testa”. Luciana recusava as princesas e as

estrelas. Seu Adão coçaria o pixaim,

encolheria os ombros. Levá-la-ia para a

gaiola. Mamãe recebê-la-ia zangadíssima. E

daria, quando seu Adão se retirasse, várias

chineladas em Dona Henriqueta da Boa-Vista.

Sem dúvida. Mas isso ainda estava muito

longe – e Luciana aborrecia tristezas.

 

(Graciliano Ramos. Luciana. In: Insônia. Record 14ª Ed. Rio, São Paulo: 1978. p. 61-68. Texto adaptado.)

Que sentimentos experimentou Luciana quando ouviu, pela primeira vez, que era uma menina que sabia onde o diabo dormia?

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