Explicaê

01

Uma vela para Dario

Dalton Trevisan

 

[1] Dario vinha apressado, guarda-chuva no braço

[2] esquerdo e, assim que dobrou a esquina,

[3] diminuiu o passo até parar, encostando-se à

[4] parede de uma casa. Por ela escorregando,

[5] sentou-se na calçada, ainda úmida de chuva, e

[6] descansou na pedra o cachimbo.

 

[7] Dois ou três passantes rodearam-no e

[8] indagaram se não se sentia bem. Dario abriu a

[9] boca, moveu os lábios, não se ouviu resposta.

[10] O senhor gordo, de branco, sugeriu que devia

[11] sofrer de ataque.

 

[12] Ele reclinou-se mais um pouco, estendido

[13] agora na calçada, e o cachimbo tinha apagado.

[14] O rapaz de bigode pediu aos outros que se

[15] afastassem e o deixassem respirar. Abriu-lhe o

[16] paletó, o colarinho, a gravata e a cinta.

[17] Quando lhe retiraram os sapatos, Dario roncou

[18] feio e bolhas de espuma surgiram no canto da

[19] boca.

 

[20] Cada pessoa que chegava erguia-se na ponta

[21] dos pés, embora não o pudesse ver. Os

[22] moradores da rua conversavam de uma porta

[23] à outra, as crianças foram despertadas e de

[24] pijama acudiram à janela. O senhor gordo

[25] repetia que Dario sentara-se na calçada,

[26] soprando ainda a fumaça do cachimbo e

[27] encostando o guarda-chuva na parede. Mas

[28] não se via guarda-chuva ou cachimbo ao seu

[29] lado.

 

[30] A velhinha de cabeça grisalha gritou que ele

[31] estava morrendo. Um grupo o arrastou para o

[32] táxi da esquina. Já no carro a metade do

[33] corpo, protestou o motorista: quem pagaria a

[34] corrida? Concordaram chamar a ambulância.

[35] Dario conduzido de volta e recostado à parede

[36] – não tinha os sapatos nem o alfinete de

[37] pérola na gravata.

 

[38] Alguém informou da farmácia na outra rua.

[39] Não carregaram Dario além da esquina; a

[40] farmácia no fim do quarteirão e, além do mais,

[41] muito pesado. Foi largado na porta de uma

[42] peixaria. Enxame de moscas lhe cobriu o

[43] rosto, sem que fizesse um gesto para espantá-

[44] las.

 

[45] Ocupado o café próximo pelas pessoas que

[46] vieram apreciar o incidente e, agora, comendo

[47] e bebendo, gozavam as delícias da noite. Dario

[48] ficou torto como o deixaram, no degrau da

[49] peixaria, sem o relógio de pulso.

[50] Um terceiro sugeriu que lhe examinassem os

[51] papéis, retirados – com vários objetos – de

[52] seus bolsos e alinhados sobre a camisa

[53] branca. Ficaram sabendo do nome, idade;

[54] sinal de nascença. O endereço na carteira era

[55] de outra cidade.

 

[56] Registrou-se correria de mais de duzentos

[57] curiosos que, a essa hora, ocupavam toda a

[58] rua e as calçadas: era a polícia. O carro negro

[59] investiu a multidão. Várias pessoas

[60] tropeçaram no corpo de Dario, que foi

[61] pisoteado dezessete vezes.

 

[62] O guarda aproximou-se do cadáver e não pôde

[63] identificá-lo – os bolsos vazios. Restava a

[64] aliança de ouro na mão esquerda, que ele

[65] próprio – quando vivo – só podia destacar

[66] umedecida com sabonete. Ficou decidido que o

[67] caso era com o rabecão.

 

[68] A última boca repetiu “Ele morreu, ele

[69] morreu”. A gente começou a se dispersar.

[70] Dario levara duas horas para morrer, ninguém

[71] acreditou que estivesse no fim. Agora, aos que

[72] podiam vê-lo, tinha todo o ar de um defunto.

 

[73] Um senhor piedoso despiu o paletó de Dario

[74] para lhe sustentar a cabeça. Cruzou as suas

[75] mãos no peito. Não pôde fechar os olhos nem

[76] a boca, onde a espuma tinha desaparecido.

[77] Apenas um homem morto e a multidão se

[78] espalhou, as mesas do café ficaram vazias. Na

[79] janela alguns moradores com almofadas para

[80] descansar os cotovelos.

 

[81] Um menino de cor e descalço veio com uma

[82] vela, que acendeu ao lado do cadáver. Parecia

[83] morto há muitos anos, quase o retrato de um

[84] morto desbotado pela chuva.

[85] Fecharam-se uma a uma as janelas e, três

[86] horas depois, lá estava Dario à espera do

[87] rabecão. A cabeça agora na pedra, sem o

[88] paletó, e o dedo sem a aliança. A vela tinha

[89] queimado até a metade e apagou-se às

[90] primeiras gotas da chuva, que voltava a cair.

TREVISAN, Dalton. Vinte Contos Menores. Rio de Janeiro: Record, 1979.

Tomando o primeiro parágrafo do conto “Dario vinha apressado, guarda-chuva no braço esquerdo e, assim que dobrou a esquina, diminuiu o passo até parar, encostando-se à parede de uma casa. Por ela escorregando, sentou-se na calçada, ainda úmida de chuva, e descansou na pedra o cachimbo” – (linhas 01-06), vê-se, na sequência dos verbos destacados, a ideia de

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