Explicaê

01

Texto

 

Da solidão

 

    Há muitas pessoas que sofrem do mal da solidão.

Basta que em redor delas se arme o silêncio, que não se

manifeste aos seus olhos nenhuma presença humana, para

que delas se apodere imensa angústia: como se o peso do

[5] céu desabasse sobre sua cabeça, como se dos horizontes

se levantasse o anúncio do fim do mundo.

    No entanto, haverá na terra verdadeira solidão?

Não estamos todos cercados por inúmeros objetos, por

infinitas formas da Natureza e o nosso mundo particular

[10] não está cheio de lembranças, de sonhos, de raciocínios,

de ideias, que impedem uma total solidão?

    Tudo é vivo e tudo fala, em redor de nós, embora

com vida e voz que não são humanas, mas que podemos

aprender a escutar, porque muitas vezes essa linguagem

[15] secreta ajuda a esclarecer o nosso próprio mistério. Como

aquele Sultão Mamude, que entendia a fala dos pássaros,

podemos aplicar toda a nossa sensibilidade a esse

aparente vazio de solidão: e pouco a pouco nos sentiremos

enriquecidos.

[20]     Pintores e fotógrafos andam em volta dos objetos

à procura de ângulos, jogos de luz, eloquência de formas,

para revelarem aquilo que lhes parece não só o mais

estático dos seus aspectos, mas também o mais

comunicável, o mais rico de sugestões, o mais capaz de

[25] transmitir aquilo que excede os limites físicos desses

objetos, constituindo, de certo modo, seu espírito e sua

alma.

    Façamo-nos também desse modo videntes:

olhemos devagar para a cor das paredes, o desenho das

[30] cadeiras, a transparência das vidraças, os dóceis panos

tecidos sem maiores pretensões. Não procuremos neles a

beleza que arrebata logo o olhar, o equilíbrio de linhas, a

graça das proporções: muitas vezes seu aspecto – como o

das criaturas humanas – é inábil e desajeitado. Mas não é

[35] isso que procuramos, apenas: é o seu sentido íntimo que

tentamos discernir. Amemos nessas humildes coisas a

carga de experiências que representam, e a repercussão,

nelas sensível, de tanto trabalho humano, por infindáveis

séculos.

[40]     Amemos o que sentimos de nós mesmos, nessas

variadas coisas, já que, por egoístas que somos, não

sabemos amar senão aquilo em que nos encontramos.

Amemos o antigo encantamento dos nossos olhos infantis,

quando começavam a descobrir o mundo: as nervuras das

[45] madeiras, com seus caminhos de bosques e ondas e

horizontes; o desenho dos azulejos; o esmalte das louças;

os tranquilos, metódicos telhados... Amemos o rumor da

água que corre, os sons das máquinas, a inquieta voz dos

animais, que desejaríamos traduzir.

[50]     Tudo palpita em redor de nós, e é como um dever

de amor aplicarmos o ouvido, a vista, o coração a essa

infinidade de formas naturais ou artificiais que encerram

seu segredo, suas memórias, suas silenciosas experiências.

A rosa que se despede de si mesma, o espelho onde pousa

[55] o nosso rosto, a fronha por onde se desenham os sonhos

de quem dorme, tudo, tudo é um mundo com passado,

presente, futuro, pelo qual transitamos atentos ou

distraídos. Mundo delicado, que não se impõe com

violência: que aceita a nossa frivolidade ou o nosso

[60] respeito; que espera que o descubramos, sem anunciar

nem pretender prevalecer; que pode ficar para sempre

ignorado, sem que por isso deixe de existir; que não faz da

sua presença um anúncio exigente " Estou aqui! estou

aqui! ". Mas, concentrado em sua essência, só se revela

[65] quando os nossos sentidos estão aptos para descobrirem.

E que em silêncio nos oferece sua múltipla companhia,

generosa e invisível.

  Oh! se vos queixais de solidão humana, prestai

atenção, em redor de vós, a essa prestigiosa presença, a

[70] essa copiosa linguagem que de tudo transborda, e que

conversará convosco interminavelmente.

MEIRELES, Cecília. Da solidão. In: MEIRELES, Cecília. Janela Mágica. São Paulo: Global, 2016, pp. 71-74.

A expressão destacada no trecho “Façamo-nos também desse modo videntes: olhemos devagar para a cor das paredes, o desenho das cadeiras, a transparência das vidraças, os dóceis panos tecidos sem maiores pretensões.” (linhas 28-31) pode ser substituída sem mudança de sentido por

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