O suor e a lágrima
[1] Fazia calor no Rio, quarenta graus e
qualquer coisa, quase quarenta e um. No dia
seguinte, os jornais diriam que fora o dia
mais quente deste verão que inaugura o
[5] século e o milênio. Cheguei ao Santos
Dumont, o voo estava atrasado, decidi
engraxar os sapatos. Pelo menos aqui no Rio
são raros esses engraxates, só existem nos
aeroportos e em poucos lugares avulsos.
[10] Sentei-me naquela espécie de cadeira
canônica, de coro de abadia pobre, que
também pode parecer o trono de um rei
desolado de um reino desolante.
O engraxate era gordo e estava com
[15] calor — o que me pareceu óbvio. Elogiou
meu sapato, cromo italiano, fabricante
ilustre, os Rossetti. Uso-o pouco, em parte
para poupá-lo, em parte porque quando
posso estou sempre de tênis.
[20] Ofereceu-me o jornal que eu já havia
lido e começou seu ofício. Meio careca, o
suor encharcou-lhe a testa e a calva. Pegou
aquele paninho que dá brilho final nos
sapatos e com ele enxugou o próprio suor,
[25] que era abundante.
Com o mesmo pano, executou com
maestria aqueles movimentos rápidos em
torno da biqueira, mas a todo o instante o
usava para enxugar-se — caso contrário, o
[30] suor inundaria o meu cromo italiano.
E foi assim que a testa e a calva do
valente filho do povo ficaram manchadas de
graxa e o meu sapato adquiriu um brilho de
espelho, à custa do suor alheio. Nunca tive
[35] sapatos tão brilhantes, tão dignamente
suados.
Na hora de pagar, alegando não ter nota
menor, deixei-lhe um troco generoso. Ele me
olhou espantado, retribuiu a gorjeta me
[40] desejando em dobro tudo o que eu viesse a
precisar no resto dos meus dias.
Saí daquela cadeira com um baita
sentimento de culpa. Que diabo, meus
sapatos não estavam tão sujos assim, por
[45] míseros tostões fizera um filho do povo suar
para ganhar seu pão. Olhei meus sapatos e
tive vergonha daquele brilho humano
salgado como lágrimas.
CONY, Carlos Heitor. In: Eu aos pedaços: memórias. São Paulo: Leya, 2010. p. 114-115.
Atente ao que se diz do enunciado seguinte: “Olhei meus sapatos e tive vergonha daquele brilho humano salgado como lágrimas” (linhas 46- 48).
I. A vergonha que o cronista tem, na verdade, não é propriamente do brilho do sapato, mas do esforço humano despendido para produzilo.
II. O brilho, que exigiu esforço humano, foi conseguido à custa do pranto do trabalhador.
III. O suor que o engraxate deixou cair sobre o sapato sugere o esforço despendido pelo trabalhador explorado.
Está correto o que se diz somente em: