O texto 2 (subdividido em seções) faz uma reflexão sobre a maneira como se comporta, em determinado momento, a sociedade brasileira, que, mais cedo ou mais tarde, teria que integrar negros e mulatos.
Texto 2
José Paulo Florenzano
FUTEBOL E RACISMO: O MITO DA
[50] DEMOCRACIA EM CAMPO
A história do futebol brasileiro contém, ao
longo de quase um século, registros de
episódios marcados pelo racismo. Eis o
paradoxo: se de um lado a atividade
[55] futebolística era depreciada aos olhos da
“boa sociedade” enquanto profissão destinada
a pobres, negros e marginais, de outro ela se
achava investida do poder de representar e
projetar a nação em escala mundial.
[60] VÍNCULO MENOS ASSIMÉTRICO ENTRE
NEGROS E BRANCOS
O trem do futebol descortinava perspectivas
promissoras no terreno das relações sociais.
Mas embora transportasse ricos e pobres,
[65] negros e brancos, ele o fazia alocando os
diversos grupos em vagões separados.
Enquanto a juventude privilegiada agia de
modo a reforçar as divisões internas da
composição, a mocidade alegre dos subúrbios
[70] buscava franquear a passagem a fim de
enriquecer a experiência da viagem. Caberia,
nesse sentido, um papel de destaque aos
jogadores que logravam transitar entre os
diversos compartimentos.
[75] LEÔNIDAS DA SILVA: IDENTIDADE AMBÍGUA
DO ATLETA
Seria nesta conjuntura adversa que
Leônidas da Silva pegaria o bonde da história.
Símbolo da proeminência adquirida pelo boleiro
[80] em detrimento do sportsman, ele encarnava a
mudança destinada a apagar os últimos
vestígios da marca refinada, esnobe e
excludente que a juventude privilegiada
procurara atribuir à prática do esporte inglês,
[85] substituindo-a gradativamente por uma feição
mais popular do jogo, por uma dimensão mais
nacional do futebol, por uma identidade mais
ambígua do atleta.
RISCOS SIMBÓLICOS
[90] A realização da Copa do Brasil em 1950
viria a se constituir, neste sentido, em uma
rara oportunidade. No dia da decisão contra o
Uruguai sobreveio o inesperado revés. Foi,
então, que os torcedores descobriram os riscos
[95] simbólicos envolvidos na tarefa de reimaginar
a nação dentro das quatro linhas do campo. As
reportagens da crônica esportiva elegiam o
goleiro Barbosa e o defensor Bigode como
bodes expiatórios, exprimindo a vontade de
[100] “descarregar nas costas” dos referidos
jogadores os “prejuízos” acarretados pela
derrota. Uma chibata moral, eis a sentença
proferida no tribunal dos brancos.
A REVOLTA DA CHIBATA
[105] Nos anos 1970, por não atender às
expectativas normativas suscitadas pelo
estereótipo do “bom negro”, Paulo César Lima
foi classificado como “jogador-problema”.
Responsabilizado pelo fracasso do Brasil na
[110] Copa da Alemanha, pleiteava o direito de voltar
a vestir a camisa verde e amarela. O rumor de
que o banimento tinha o respaldo de um
ministro de Estado, não o surpreendia: “Se for,
mais uma vez vou ter a certeza de que sou um
[115] negro que incomoda muita gente”. E
acrescentava: “Não vou ser um negro tímido,
quieto, com medo e temor das pessoas”. Dessa
maneira, nas páginas de O Estado de S. Paulo,
Paulo César esboçava a revolta da chibata no
[120] futebol brasileiro. Enquanto Barbosa e Bigode,
sem alternativa, suportaram com dignidade o
linchamento moral na derrota de 1950, Paulo
César contra-atacava os que pretendiam
condená-lo pelo insucesso de 1974, reeditando
[125] as acusações de “covarde” e de “mercenário” –
as mesmas dirigidas a Leônidas no passado.
Paulo César, no entanto, assumia, sem
ambiguidades, as cores e as causas defendidas
pela esquadra dos pretos em todas as esferas
[130] da vida social. “Sinto na pele esse racismo
subjacente”, revelou certa vez à imprensa
francesa: “Isto é, ninguém ousa pronunciar a
palavra racismo. Mas posso garantir que ele
existe, mesmo na Seleção Brasileira”. Sua
[135] ousadia consistiu em pronunciar a palavra
interdita no espaço simbólico utilizado pelo
discurso oficial para reafirmar o mito da
democracia racial.
José Paulo Florenzano é professor de Antropologia da PUC-SP e autor do livro “A Democracia Corinthiana” (2009). Texto adaptado.
Na primeira parte do texto, o autor fala em paradoxo (linha 54), palavra que pode ser entendida como uma contradição entre opiniões divergentes de uma mesma pessoa; entre opinião e comportamento ou entre os termos de uma proposição. Assinale a opção que expressa corretamente, no texto, os elementos que formam o paradoxo.