Texto 2
“Unde Malum”
[65] Os sapatinhos sem meias, a roupa
encharcada, o rosto suavemente deitado
sobre a areia da praia em Bodrum, na
Turquia. Aylan Shenu, o refugiado sírio de 3
anos, parecia adormecido, em uma daquelas
[70] imagens de desconcertante inocência que só
uma criança subitamente vencida pelo
cansaço é capaz de produzir. A sensação boa
dura pouco. Logo se percebe que Aylan está
morto. Seu corpo inerte foi jogado na areia
[75] pelas ondas do Mediterrâneo. A legenda da
foto informa que Aylan morreu afogado com a
mãe, Rehan, e o irmão de 5 anos, Galip,
quando o barco precário que os transportava
afundou. Só Abdullah, o pai do menino,
[80] sobreviveu. Como dezenas de milhares de
outros sírios vêm fazendo em desespero, os
Shenu lançaram-se ao mar para fugir da
guerra civil insana que arrasa o seu país.
As cenas do corpo de Aylan na areia – e,
[85] em outra foto, carregado nos braços por um
policial turco – foram fortes demais mesmo
para um mundo anestesiado por desgraças
que chegam sem parar a bilhões de pessoas
instantaneamente pela internet. A mente
[90] humana só tem a fé e a arte para não perder
a razão diante de imagens como as de Aylan.
Santo Agostinho, um portento da inteligência
cristã, nunca conseguiu conciliar a ideia de um
Deus onipotente, soberanamente bom, com a
[95] existência do mal no mundo. Sua indagação
em latim “Unde malum” (“De onde vem o
mal?”) atravessa os séculos sem resposta
inteiramente satisfatória. No poema com esse
título, o polonês Czeslaw Milosz, ganhador do
[100] Nobel de literatura em 1980, responde que o
bem e o mal só existem no homem – e se a
espécie humana deixar de existir eles também
desaparecerão.
“El pie del niño aún no sabe que es pie” –
[105] assim o poeta chileno Pablo Neruda descreveu
sua perplexidade metafísica ante os mistérios
da caminhada humana. O escritor americano
Ernest Hemingway famosamente venceu os
amigos em uma disputa literária para ver
[110] quem conseguiria comover os demais com a
história mais curta: “Vendo sapatinho de
bebê. Nunca usado”. Pendendo solto dos
braços do policial turco em Bodrum, os
pezinhos de Aylan, dentro dos sapatos sem
[115] serventia, ainda não sabiam que eram pés.
Isso é que mais dói.
(Carta ao Leitor. Veja. 9/09/2015. p. 12)
O texto inicia-se com uma sequência descritiva, que vai da linha 65 à linha 72 (“produzir”). Assinale o que está INCORRETO no que se diz a respeito desse trecho do texto.