Memórias do cárcere
Resolvo-me a contar, depois de muita hesitação, casos passados há dez anos − e, antes de
começar, digo os motivos por que silenciei e por que me decido. Não conservo notas: algumas
que tomei foram inutilizadas, e assim, com o decorrer do tempo, ia-me parecendo cada vez mais
difícil, quase impossível, redigir esta narrativa. Além disso, julgando a matéria superior às minhas
[5] forças, esperei que outros mais aptos se ocupassem dela. Não vai aqui falsa modéstia, como
adiante se verá. Também me afligiu a ideia de jogar no papel criaturas vivas, sem disfarces, com
os nomes que têm no registro civil. Repugnava-me deformá-las, dar-lhes pseudônimo, fazer do
livro uma espécie de romance; mas teria eu o direito de utilizá-las em história presumivelmente
verdadeira? Que diriam elas se se vissem impressas, realizando atos esquecidos, repetindo
[10] palavras contestáveis e obliteradas?
(...)
O receio de cometer indiscrição exibindo em público pessoas que tiveram comigo convivência
forçada já não me apoquenta. Muitos desses antigos companheiros distanciaram-se, apagaramse.
Outros permaneceram junto a mim, ou vão reaparecendo ao cabo de longa ausência, alteramse,
completam-se, avivam recordações meio confusas − e não vejo inconveniência em mostrá-los.
(...)
[15] E aqui chego à última objeção que me impus. Não resguardei os apontamentos obtidos em
largos dias e meses de observação: num momento de aperto fui obrigado a atirá-los na água.
Certamente me irão fazer falta, mas terá sido uma perda irreparável? Quase me inclino a supor
que foi bom privar-me desse material. Se ele existisse, ver-me-ia propenso a consultá-lo a cada
instante, mortificar-me-ia por dizer com rigor a hora exata de uma partida, quantas demoradas
[20] tristezas se aqueciam ao sol pálido, em manhã de bruma, a cor das folhas que tombavam das
árvores, num pátio branco, a forma dos montes verdes, tintos de luz, frases autênticas, gestos,
gritos, gemidos. Mas que significa isso? Essas coisas verdadeiras podem não ser verossímeis.
E se esmoreceram, deixá-las no esquecimento: valiam pouco, pelo menos imagino que valiam
pouco. Outras, porém, conservaram-se, cresceram, associaram-se, e é inevitável mencioná-
[25] las. Afirmarei que sejam absolutamente exatas? Leviandade. (...) Nesta reconstituição de fatos
velhos, neste esmiuçamento, exponho o que notei, o que julgo ter notado. Outros devem possuir
lembranças diversas. Não as contesto, mas espero que não recusem as minhas: conjugam-se,
completam-se e me dão hoje impressão de realidade. Formamos um grupo muito complexo, que
se desagregou. De repente nos surge a necessidade urgente de recompô-lo. Define-se o ambiente,
[30] as figuras se delineiam, vacilantes, ganham relevo, a ação começa. Com esforço desesperado
arrancamos de cenas confusas alguns fragmentos. Dúvidas terríveis nos assaltam. De que modo
reagiram os caracteres em determinadas circunstâncias? O ato que nos ocorre, nítido, irrecusável,
terá sido realmente praticado? Não será incongruência? Certo a vida é cheia de incongruências,
mas estaremos seguros de não nos havermos enganado? Nessas vacilações dolorosas, às vezes
[35] necessitamos confirmação, apelamos para reminiscências alheias, convencemo-nos de que a
minúcia discrepante não é ilusão. Difícil é sabermos a causa dela, desenterrarmos pacientemente
as condições que a determinaram. Como isso variava em excesso, era natural que variássemos
também, apresentássemos falhas. Fiz o possível por entender aqueles homens, penetrar-lhes
na alma, sentir as suas dores, admirar-lhes a relativa grandeza, enxergar nos seus defeitos a
[40] sombra dos meus defeitos. Foram apenas bons propósitos: devo ter-me revelado com frequência
egoísta e mesquinho. E esse desabrochar de sentimentos maus era a pior tortura que nos podiam
infligir naquele ano terrível.
GRACILIANO RAMOS Memórias do cárcere. Rio de Janeiro: Record, 2002.
Em sua reflexão acerca das possibilidades de recompor a memória para escrever o livro, o narrador utiliza um procedimento de construção textual que contribui para a expressão de suas inquietudes.
Tal procedimento pode ser identificado como: