O chá, os fantasmas, os ventos encanados...
Nasci no tempo dos ventos encanados, quando, para evitar compromissos, a “gente bem” dizia
estar com enxaqueca, palavra horrível mas desculpa distinta. Ter enxaqueca não era para todos,
mas só para essas senhoras que tomavam chá com o dedo mindinho espichado. Quando eu via
aquilo, ficava a pensar sozinho comigo (menino, naqueles tempos, não dava opinião) por que é
[5] que elas não usavam, para cúmulo da elegância, um laçarote azul no dedo...
Também se falava misteriosamente em “moléstias de senhoras” nos anúncios farmacêuticos
que eu lia. Era decerto uma coisa privativa das senhoras, como as enxaquecas, pois as criadas,
essas, não tinham tempo para isso. Mas, em compensação, me assustavam deliciosamente com
histórias de assombrações. Nunca me apareceu nenhuma.
[10] Pelo visto, era isso: nunca consegui comunicar-me com este nem com o outro mundo. A não ser
através d’ O tico-tico e da poesia de Camões, do qual até hoje me assombra este verso único: “Que
o menor mal de tudo seja a morte!” Pois a verdadeira poesia sempre foi um meio de comunicação
com este e com o outro mundo.
MÁRIO QUINTANA Mario Quintana: poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.
Além da comparação entre papéis sociais, há no texto outra comparação, implícita, que indica uma compreensão do narrador acerca de comportamentos na sociedade.
Essa comparação implícita está em: