Explicaê

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O ARRASTÃO

 

[1] Estarrecedor, nefando, inominável, infame. Gasto logo os adjetivos porque eles fracassam em

dizer o sentimento que os fatos impõem. Uma trabalhadora brasileira, descendente de escravos,

como tantos, que cuida de quatro filhos e quatro sobrinhos, que parte para o trabalho às quatro

e meia das manhãs de todas as semanas, que administra com o marido um ganho de mil e

[5] seiscentos reais, que paga pontualmente seus carnês, como milhões de trabalhadores brasileiros,

é baleada em circunstâncias não esclarecidas no Morro da Congonha e, levada como carga no

porta-malas de um carro policial a pretexto de ser atendida, é arrastada à morte, a céu aberto,

pelo asfalto do Rio.

Não vou me deter nas versões apresentadas pelos advogados dos policiais. Todas as vozes

[10] terão que ser ouvidas, e com muita atenção à voz daqueles que nunca são ouvidos. Mas, antes

das versões, o fato é que esse porta-malas, ao se abrir fora do script, escancarou um real que

está acostumado a existir na sombra.

O marido de Cláudia Silva Ferreira disse que, se o porta-malas não se abrisse como abriu (por

obra do acaso, dos deuses, do diabo), esse seria apenas "mais um caso". Ele está dizendo:

[15] seria uma morte anônima, aplainada1 pela surdez da praxe2, pela invisibilidade, uma morte não

questionada, como tantas outras.

É uma imagem verdadeiramente surreal, não porque esteja for a da realidade, mas porque

destampa, por um "acaso objetivo" (a expressão era usada pelos surrealistas3), uma cena

recalcada4 da consciência nacional, com tudo o que tem de violência naturalizada e corriqueira,

[20] Tratamento degradante dado aos pobres, estupidez elevada ao cúmulo, ignorância bruta

transformada em trapalhada transcendental5, além de um índice grotesco de métodos de

camuflagem e desaparição de pessoas. Pois assim como Amarildo6 é aquele que desapareceu

das vistas, e não faz muito tempo, Cláudia é aquela que subitamente salta à vista, e ambos

soam, queira-se ou não, como o verso e o reverso do mesmo.

[25] O acaso da queda de Cláudia dá a ver algo do que não pudemos ver no caso do desaparecimento

de Amarildo. A sua passagem meteórica pela tela é um desfile do carnaval de horror que

escondemos. Aquele carro é o carro alegórico de um Brasil, de um certo Brasil que temos que

lutar para que não se transforme no carro alegórico do Brasil.

José Miguel Wisnik Adaptado de oglobo.globo.com, 22/03/2014. 

Pois assim como Amarildo é aquele que desapareceu das vistas, e não faz muito tempo, Cláudia é aquela que subitamente salta à vista, e ambos soam, queira-se ou não, como o verso e o reverso do mesmo. (l. 22-24)


Neste trecho, para aproximar dois casos recentemente noticiados na imprensa, o autor emprega um recurso de linguagem denominado:



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