Texto base: Texto para à questão.
O olho de vidro do meu avô
Dizem que ele viajou para São Paulo. Naquele tempo, São Paulo ficava quase em outro país. Foi comprar esse olho que não via. Ele jamais acreditou que, em terra de cego, quem tem um olho é rei. Venceu longos dias de estrada, poeira, lama, fantasiado de pirata, como se fosse Carnaval. Tudo para conquistar um olho. Meu avô era vaidoso, mesmo sem desejar ter reinado. Voltou com dois olhos, mas apreciando a paisagem apenas com o lado direito. Pelo olho esquerdo ele só adivinhava. Um olho era de mentira e o outro era de verdade. Mas isso não lhe trazia problemas. Cego é aquele que não quer ver. Ele via muito. Tudo no mundo é, em parte, uma verdade e, por outra parte, uma mentira. Com o olho direito meu avô via o Sol, a luz, o futuro, o meio-dia. Com o olho esquerdo ele via a Lua, o escuro, o passado, a meia-noite. Um dia me falaram que a alma tem dois olhos. Com um, ela olha para o tempo, com o outro, ela namora a eternidade. Um olho é do amor e o outro é do desamor. [...] Um dia eu virei meu avô. Minha mãe me vestiu de pirata. Eu nem sabia o que era Carnaval. Meu desejo era afastar a venda que cobria o meu olho e me impedia de ver melhor. Faltava luz para o meu olhar. Mas sem a venda eu deixaria de ser pirata e ainda mataria a alegria da minha mãe de me ver como seu pai. Com um olho eu via o baile, as máscaras, os disfarces. Com o outro eu invadia caravelas, assaltava navios, vencia mares, me assustava com os tesouros. Como meu avô, eu via o visível e me encantava com o invisível. Não ter um olho é ver duas vezes. Com um olho você vê o raso e com o outro mergulha no fundo. Bartolomeu Campos de Queirós. O olho de vidro do meu avô. São Paulo: Moderna, 2004. p. 13-14.
Por que ter um olho que “era de mentira e o outro de verdade” não trazia problemas para o avô?