O anjo da noite Às dez e meia, o guarda-noturno entra de serviço. Late o cãozinho do portão no primeiro plano; ladra o cão maior no quintal, no segundo plano: de plano em plano, até a floresta, grandes e pequenos cães rosnam, ganem, uivam, na densa escuridão da noite, todos sobressaltados pelo trilar¹ do apito do guarda-noturno. Pelo mesmo motivo, faz-se um hiato³ no jardim, entre os insetos que ciciavam e sussurravam nas frondes²: que novo bicho é esse que começa a cantar com uma voz que eles julgam conhecer, que se parece com a sua, mas que se eleva com uma força gigantesca? Passo a passo, o guarda-noturno vai subindo a rua. Já não apita: vai caminhando descansadamente, como quem passeia, como quem pensa, como um poeta numa alameda silenciosa, sob árvore em flor. Assim vai andando o guarda-noturno. Se a noite é bem sossegada, pode-se ouvir sua mão sacudir a caixa de fósforos, e até adivinhar, com bom ouvido, quantos fósforos estão lá dentro. Os cães emudecem. Os insetos recomeçam a ciciar. O guarda-noturno olha para as casas, para os edifícios, para os muros e grades, para as janelas e os portões. Uma pequena luz, lá de cima: há várias noites, aquela vaga claridade na janela; é uma pessoa doente? O guarda-noturno caminha com delicadeza, para não assustar, para não acordar ninguém. Lá vão seus passos vagarosos, cadenciados, cosendo a sua sombra com a pedra da calçada. Vagos rumores de bondes, de ônibus, os últimos veículos, já sonolentos, que vão e voltam quase vazios. O guarda-noturno, que passa rente às casas, pode ouvir ainda a música de algum rádio, o choro de alguma criança, um resto de conversa, alguma risada. Mas vai andando. A noite é serena, a rua está em paz, o luar põe uma névoa azulada nos jardins, nos terraços, nas fachadas: o guarda-noturno para e contempla. [...] MEIRELES, Cecília. Quadrante 2. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1963. Vocabulário de apoio:
- 1. Trilar: gorjear, trinar.
- 2. Fronde: copa, folhagem.
- 3. Hiato: vazio, lacuna.
- a) Uma das principais características da crônica é o fato de o cronista tomar como ponto de partida um assunto do cotidiano ou um acontecimento sem um significado de grande relevância. Como esse aspecto aparece evidenciado no texto?
- b) De quem é a reflexão que se manifesta por meio da pergunta feita no final do primeiro parágrafo?
- c) Ainda considerando a pergunta feita no final do primeiro parágrafo, levante uma hipótese: por que o autor deixa de empregar as marcas convencionais do discurso direto, tais como o travessão ou as aspas?