(UPF) Vespertina tropical
24Então 4Deus, tendo acabado de criar o firmamento e os continentes, o homem e 10a mulher, a zebra, os elétrons, o umbu e a neblina, quis dar um último toque em Sua obra: num arroubo de lirismo, lá pelas 17h54 do sexto dia, pintou a aurora boreal. É, 12de fato, um 3troço estupendo: 28mais bonito que o pôr do sol, mais improvável que a girafa, mais grandioso que o relâmpago. Era pra ser o corolário da criação, a maior atração da Terra, 32diante da qual casais em lua de mel deixariam cair os queixos, japoneses ergueriam as câmeras e mochileiros bateriam palmas, contentes por terem nascido neste planeta abençoado e multicolor, mas, 14infelizmente, como se sabe, 25a aurora boreal 1não 15pegou.
16Claro: 31é longe, é raro e é muito cedo, como esses espetáculos incríveis encenados domingo de manhã no Sesc Belenzinho. Imagina se a aurora boreal fosse nos trópicos, seis e meia da tarde? 11O sujeito tá num táxi na avenida Atlântica, olha pro lado, o céu todo verde e amarelo e laranja e roxo, saca o celular, faz um “selfie” [tava louco pra usar essa palavra], posta “#vespertinatropical!!!” e segue pra casa, satisfeito. Mas não, é pra lá da Groenlândia, 4h30 AM, ninguém sabe quando: aí, não adianta reclamar que o público é ignorante e prefere a caretice hollywoodiana de um arco-íris.
Fosse só a aurora boreal, 13beleza, mas 18a natureza tá cheia de desarranjos semelhantes. Não surpreende: ela foi criada há milhões de anos, nunca passou por uma revisão e ainda é administrada pelo fundador. 30Se eu fosse 5Javé, chamava uma dessas consultorias especializadas em fazer a transição de 8empresas familiares para organizações, digamos, mais competitivas, e dava um choque de gestão. Nem precisa gastar muito, basta alocar melhor os recursos.
19Veja os cometas, por exemplo. Tudo espalhado por aí, nos visitam só a cada 70, cem anos, às vezes chegam de lado, outras vezes de dia, ninguém vê, 2baita desperdício de energia. Por que não 9otimizar essas órbitas? 33Fazer com que venham cinco, dez ao mesmo tempo na noite de Réveillon, proporcionando uma queima de fogos global à nossa sofrida humanidade?
20A gravidade é outro assunto que merece uma calibrada: tem que ser mesmo 9,8 m/s2? Por quê? Como Deus chegou a esse número? Gostaria que Ele abrisse as planilhas para entendermos se cada m/s2 é realmente necessário. Com metade dessa atração, nós continuaríamos colados ao chão e seria muito mais agradável se locomover por aí. O mínimo que o Senhor poderia fazer era dar uma amainada de dezembro a março: imagina que alívio encarar esse calorão com 25% menos esforço, durante a “Gravidade de Verão”. 17Sem falar, óbvio, em 50% para grávidas, idosos e cadeirantes.
26Não tenho dúvida de que o 6Todo Poderoso resistirá a essas e outras reformas. 22Criar o Universo é o tipo da coisa que infla um pouco o ego do sujeito, 27mas seria bom se Ele se animasse a colocar o mundo nos eixos - literalmente: 23já repararam como a Terra gira toda torta, envergada como um frei Damião?
21Se meu pacote de sugestões não puder convencê-Lo pelo bom senso, quem sabe ao menos uma parte cutuque a Sua vaidade? Ora, 7El Shaddai, 29a aurora boreal é um negócio tão lindo, tão grandioso, tão divino, não é justo que siga sendo exibida, ano após ano, apenas para os ursos-polares, as focas e a Björk, é ou não é?
PRATA, Antonio. “Vespertina Tropical”. Folha de São Paulo.
Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/colunas/antonioprata/2014/02/1406077-vespertina-tropical.shtml.
Acesso em 21 mar. 2014
Os tempos e os modos verbais contribuem para construir, no texto, determinados efeitos de sentido. Acerca desses efeitos, afirma-se:
I. O futuro do pretérito é usado para dar ideia de probabilidade, como ocorre em “diante da qual casais em lua de mel deixariam cair os queixos, japoneses ergueriam as câmeras e mochileiros bateriam palmas” (ref. 32).
II. O imperativo afirmativo contribui para construir o efeito de proximidade com o leitor, como ocorre em “Veja os cometas, por exemplo” (ref. 19).
III. O presente do subjuntivo é usado para dar ideia de possibilidade de ação, como ocorre em “Fazer com que venham cinco, dez ao mesmo tempo” (ref. 33).
Estão corretas as afirmações apresentadas em: