Leia a crônica do Luis Fernando Veríssimo e a crítica de Alexandre Beluco, e responda a questão. TEXTO I A metamorfose Uma barata acordou um dia e viu que tinha se transformado num ser humano. Começou a mexer suas patas e descobriu que só tinha quatro, que eram grandes e pesadas e de articulação difícil. Acionou suas antenas e não tinha mais antenas. Quis emitir um pequeno som de surpresa e, sem querer, deu um grunhido. As outras baratas fugiram aterrorizadas para trás do móvel. Ela quis segui-las, mas não coube atrás do móvel. O seu primeiro pensamento humano foi: que horror! Preciso me livrar dessas baratas! Pensar, para a ex-barata, era uma novidade. Antigamente ela seguia seu instinto. Agora precisava raciocinar. Fez uma espécie de manto da cortina da sala para cobrir sua nudez. Saiu pela casa, caminhando junto à parede, porque os hábitos morrem devagar. Encontrou um quarto, um armário, roupas de baixo, um vestido. Olhou-se no espelho e achou-se bonita. Para uma ex-barata. Maquiou-se. Todas as baratas são iguais, mas uma mulher precisa realçar a sua personalidade. Adotou um nome: Vandirene. Mais tarde descobriu que só um nome não bastava. A que classe pertencia? Tinha educação? Referências? Conseguiu, a muito custo, um emprego como faxineira. Sua experiência de barata lhe dava acesso a sujeiras mal suspeitadas, era uma boa faxineira. Difícil era ser gente. As baratas comem o que encontram pela frente. Vandirene precisava comprar sua comida e o dinheiro não chegava. As baratas se acasalavam num roçar de atenas, mas os seres humanos não. Se conhecem, namoram, brigam, fazem as pazes, resolvem se casar, hesitam. Será que o dinheiro vai dar? Conseguir casa, móveis, eletrodomésticos, roupa de cama, mesa e banho. A primeira noite. Vandirene e o seu torneiro mecânico. Difícil. Você não sabe nada, bem? Como dizer que a virgindade é desconhecida entre as baratas? As preliminares, o nervosismo. Foi bom? Eu sei que não foi. Se eu fosse alguém você me amaria. Vocês falam demais, disse Vandirene. Queria dizer vocês, seres humanos, mas o marido não entendeu; pensou que era vocês, os homens. Vandirene apanhou. O marido a ameaçou de morte. Vandirene não entendeu. O conceito de morte não existe entre as baratas. Vandirene não acreditou. Como é que alguém podia viver sabendo que ia morrer? Vandirene teve filhos. Lutou muito. Filas do INPS. Creches. Pouco leite. O marido desempregado. Finalmente, acertou na esportiva. Quase 4 milhões. Entre as baratas, ter ou não 4 milhões não faria diferença. A barata continuaria a ter o mesmo aspecto e a andar com o mesmo grupo. Mas Vandirene mudou. Aplicou o dinheiro. Trocou de bairro. Comprou uma casa. Passou a se vestir bem, a comer e dar de comer de tudo, a cuidar onde colocava o pronome. Subiu de classe. (Entre as baratas, não existe o conceito de classe.) Contratou babás e entrou na PUC. Começou a ler tudo o que podia. Sua maior preocupação era a morte. Ela ia morrer. Os filhos iam morrer. O marido ia morrer ― não que ele fizesse falta. O mundo inteiro, um dia, ia desaparecer. O sol. O universo. Tudo. Se espaço é o que existe entre a matéria, o que é que fica quando não há mais matéria? Como se chama a ausência do vazio? E o que será de mim quando não houver mais nem o nada? A angústia existencial é desconhecida entre as baratas. Vandirene acordou um dia e viu que tinha se transformado de novo numa barata. Seu penúltimo pensamento humano foi, meu Deus, a casa foi dedetizada há dois dias! Seu último pensamento humano foi para o seu dinheiro rendendo na financeira e o que o safado do marido, seu herdeiro legal, faria com tudo. Depois desceu pelo pé da cama e correu para trás de um móvel. Não pensava mais em nada. Era puro instinto. Morreu em cinco minutos, mas foram os cinco minutos mais felizes da sua vida. Kafka não significa nada para as baratas. (VERÍSSIMO, L. F. Mais Comédias para Ler na Escola. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008. p. 123 - 125) TEXTO II A Metamorfose uma crítica de Alexandre Beluco A metamorfose, de Franz Kafka, foi escrito em 1912, quando o autor contava vinte e nove anos. É um de seus poucos textos que foram finalizados e publicados, e é marcado pela sua forma peculiar de compor literatura. A fórmula é bastante simples: Gregor Samsa acorda certa manhã, após "sonhos intranqüilos", e se encontra metamorfoseado em um inseto monstruoso. A partir daí passa a viver uma nova rotina, na qual deve permanecer em casa e à distância de qualquer visita. O trabalho, obviamente, é abandonado e seu quarto se transforma em todo o seu mundo. Aos poucos todos se acostumam com a nova forma de Gregor, e todos convivem com ela, cada um ao seu jeito. Ao final, com a morte do grande inseto, todos se aliviam. O livro termina com a família, aliviada, reservando um dia para descanso e para passeio. Algo como um prêmio depois do calvário que foi conviver com situação tão inusitada. O final da história, a certa altura, é completamente previsível. Mas a leitura, parágrafo por parágrafo, página por página, é saborosa e gratificante. É como se o final fosse já conhecido, porém cada passo contivesse algo de potencialmente novo ou surpreendente. A história de Samsa impressiona pela alegoria associada à vida de um homem comum que exerce atividades burocráticas. O termo "kafkiano", associado a tudo que é inusitado, surgiu das situações em que Gregor aparece contemplativo, em sua nova situação, observando desde seu novo ponto de vista as pessoas e o mundo que o rodeia. A metamorfose é uma obra de literatura fantástica na medida em que explora uma situação inusitada e que foge ao que é aceitável ou palatável. Bem que poderia ser classificada como ficção científica, mas não há explicações mais detalhadas sobre a transformação do homem em inseto. O certo é que a história de Gregor Samsa transcende essas classificações e denuncia os mecanismos de dominação e de subjugação da mente humana. * texto alterado para fins didáticos. (fonte: http://e-nigma.com.pt/criticas/metamorfose.html, acessada em 30/11/09)
Enunciado:
No último parágrafo de sua crônica, Veríssimo faz alusão a Franz Kafka ao dizer: “Kafka não significa nada para as baratas”. O que ele quis dizer com isso?