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CARTA ERRANTE, AVÓ ATRAPALHADA, MENINA ANIVERSARIANTE
Era uma avó. Mais ou menos velhinha, mais ou menos gordinha, tinha o cabelo mais ou menos cinzento, e, dia sim, dia não, dores nas costas que despontavam entre a segunda e a terceira costela, produzindo uma preguiça infinita. Nesses dias, vovó Lia abria mais tarde a janela de seu quarto e nem ligava para os passarinhos da macieira. Só queria saber do Sol: se tivesse, ela descia até o jardinzinho de margaridas brancas que havia nos fundos do prédio. Se não, ela voltava para a cama com uma bolsa de água quente e ficava rabiscando cartas. Se ela gostava de escrever? Na verdade: não. Não tinha a menor vocação para a caneta: confundia as letras e frequentemente esquecia palavras, sendo obrigada a fazer frases compridas para dizer pouca coisa. [...] Num desses dias meio aborrecidos, em que o sol não aparece, mas a dor das costas sim, vovó Lia lembrou-se do aniversário da neta Luciana e resolveu escrever uma cartinha. Querida Luciana, Minha netinha linda! Meus parabéns pelo seu aniversário. Dez anos é uma data muito importante, você é quase uma mocinha. Fico lembrando o dia em que você nasceu. Eu morava no interior de São Paulo e seu avô e eu ficamos colados no telefone, esperando nos avisarem que sua mãe tinha ido para o hospital. E toda vez que o telefone tocava seu avô berrava: é menina? Ele queria tanto uma menina que quando finalmente o telefone tocou, avisando que você já tinha nascido, ele pulou de alegria, gritando: ganhei! Ganhei! E a gente foi para São Paulo... [...] Seu avô, Luciana, era um homem muito engraçado. Engraçado mesmo: ria de tudo e fazia todo mundo rir com ele. Pois nós viemos rindo de Assis a São Paulo, no dia em que você nasceu, porque ele tinha resolvido que a primeira neta dele tinha que ser a mais bonita de todas as crianças nascidas na maternidade e ele começou a organizar um concurso de Miss Berçário. Seu avô era um cientista, um químico, e tinha passado boa parte da vida em laboratórios, fazendo pesquisa. Começou na Áustria, onde nasceu e estudou, e depois em São Paulo, para onde foi fugindo do nazismo. Costumava varar as noites observando pesquisas nos laboratórios. Era tão desligado que, várias vezes, os funcionários do laboratório encontraram-no pela manhã vestindo roupa de festa. Tinha dado uma passada no laboratório para verificar o andamento de uma pesquisa, já vestido para a festa, e se esquecera de tudo diante dos tubos, soluções e espátulas. [...] Vovó Lia estava se divertindo. Apesar da dor nas costas continuar aguda, apesar de saber que a louça do jantar ainda estava esperando na pia, escrever aquela carta para sua netinha, que completava dez anos, estava sendo muito gostoso: dava a impressão de que o tempo tinha voltado atrás e ela não estava mais sozinha. Luciana era uma menina muito meiga e delicada. Bem diferente do que ela, Lia, tinha sido. Nascida na Polônia, num território que neste século já pertenceu à Rússia e à Áustria, tivera uma infância complicada. A família morava numa aldeia onde volta e meia as casas dos judeus eram invadidas e seus bens saqueados. Tinha passado fome e medo. Frequentemente, a única refeição do dia era uma batata. Mesmo assim, fora uma menina muito alegre. Só que meiga... não deu! Corajosa, espevitada e respondona, era o que diziam dela. Era a terceira dos irmãos, mas todos se voltavam para ela quando era preciso resolver alguma coisa. Sempre sabia o que queria e desde menina o pai viúvo costumava consultá-la sobre questões da casa. Principalmente depois que ela explicou para ele que, já que lavava a louça, cozinhava e arrumava a bagunça dos homens, ela tinha condições de ajudar a escolher o destino do pouco dinheiro que entrava em casa. [...] PINSKY, Mirna. Carta errante, avó atrapalhada, menina aniversariante. São Paulo: FTD, 1999.
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Características de vovó Lia
Características de Luciana
Características do avô de Luciana