LELÊ E O MINGAU DE CHOCOLATE
Anteontem foi o dia mais triste da minha vida.
Eu estava em casa, brincando com os meus brinquedos novos (um boneco de múmia e um carrinho que é uma limusine chique) enquanto o meu pai e a minha mãe não chegavam para o almoço. Aí, quando eu escutei o barulho do carro do meu pai, eu fui até a porta para pular em cima dele.
Eu vi que ele estava meio sério e aí, antes que eu pulasse na barriga dele, ele falou:
- A sua avó morreu.
Eu fiquei parado, sem me mexer. Só depois de um tempo eu consegui dizer:
- Quê?
E ele repetiu:
- A sua avó morreu.
Aí eu comecei a chorar e o meu pai me abraçou.
Nunca uma pessoa que eu conhecia tinha morrido. Aí eu fiquei pensando “Poxa, eu nunca mais vou ver ela. Nunca mais”, e eu fiquei muito triste, porque é muito triste este negócio de nunca mais.
A minha avó já estava bem velhinha. Ele morava num asilo e não lembrava mais direito das coisas. Só lembrava bem mesmo da minha mãe, que era a filha dela. Mas de mim ela não lembrava muito, só de vez em quando, e aí era legal porque ela me chamava de Bacaninha e dizia que eu era o seu neto favorito, e é sempre bom quando alguém diz que você é o favorito.
Então a minha mãe chegou e o meu pai foi falar com ela. Eu só fiquei olhando de longe, sem escutar nada. Mas nem precisava. Eu entendi quando que foi que o meu pai falou da minha avó porque de repente a minha mãe pôs as duas mãos no rosto e começou a chorar. Quando a mãe da gente chora é a coisa mais triste que tem, porque parece que a gente chora duas vezes.
De tarde teve uma coisa chamada velório e eu não fui para a escola. Não ir para escola é bom, mas dessa vez não foi. Eu vi a minha avó no caixão e foi estranho, porque não parecia que ela tinha morrido. O corpo dela estava igualzinho, e eu tinha a impressão de que ela ia levantar. Eu ficava pensando assim: “Se tem coisa que quebra e pára de funcionar, mas depois dá para consertar, porque não pode ser assim com o corpo da gente? Devia ter um jeito de consertar as pessoas depois que elas quebram, e aí elas voltam a funcionar.”
Mas eu não falei isso para ninguém porque iam dizer que eu era bobo.
O velório é uma coisa estranha. Toda a família vai, até aqueles primos que você nunca vê. E todo mundo fica triste porque alguém morreu, mas também fica um pouco alegre porque toda a família está junta. Mas eu não entendo uma coisa: se todo mundo fica feliz porque fica junto, por que não fazem isso nos outros dias, quando ninguém morreu?
Bom, ali no velório eu comecei a pensar uma coisa que eu nunca tinha pensado. Pensei que um dia eu vou morrer. E também pensei que um dia o meu pai e a minha mãe vão morrer. E pensei que o meu avô, que mora em casa e é pai do meu pai, deve morrer logo, porque ele é o que está mais velho de todos.
Acho que o meu avô pensou a mesma coisa, porque ele estava o maior calado.
Aí a gente voltou do velório e eu estava muito preocupado com esse negócio de morrer. Eu só ficava pensando que podia ter um dia que eu nunca mais ia ver alguém, e eu não gosto desse negócio de nunca mais.
Eu fui brincar com meus brinquedos novos, a múmia e a limusine chique, mas nem brincava direito. Aí o meu avô chegou perto de mim e perguntou:
- Tudo bem?
E eu respondi:
- Tudo - mas era mentira.
Eu continuei brincando por um tempo, e o meu avô ficou ali me olhando. Então uma hora eu peguei coragem e perguntei para ele:
- Por que as pessoas têm que morrer?
Foi a primeira vez que eu ouvi o meu avô responder “Não sei”, porque ele sempre sabe tudo.
Ele viu um pouco de televisão e depois ele me perguntou:
- Quer mingau de chocolate?
Eu e o meu avô gostamos um tantão de mingau de chocolate. A minha mãe até chama a gente de mingófilos. Então eu respondi:
- Quero - e a gente foi para a cozinha.
Ele fez o mingau no fogão e eu fiquei brincando com os meus carrinhos. Aí ele botou o mingau num prato, pegou duas colheres e a gente ficou esperando ele esfriar um pouco.
Ninguém falou nada por um tempo, mas aí eu não agüentei e perguntei uma coisa que eu estava com a maior vontade de perguntar:
- Vô, se todo mundo morre, por que que a gente nasce?
O meu avô ficou passando a colher pela bordinha do mingau, que é a parte que fica fria primeiro. Quando a colher ficou cheia, ele disse:
- Lelê, eu acho que a vida é mais ou menos que nem esse mingau. É uma coisa muito boa, muito gostosa, mas que a gente sabe que vai acabar. Só o que a gente pode fazer é aproveitar cada pedacinho e dividir com quem a gente gosta.
Depois deu uma risada meio triste, sem mostrar os dentes, e colocou a colher na minha boca. Aí eu enchi a minha colher o mais que dava e coloquei na boca dele. Aí ele colocou outro tanto na minha boca, mas passou a colher no meu nariz e deixou-o sujo de chocolate, e eu fiz a mesma coisa com ele. A gente foi comendo e rindo. No final só sobrou um pouquinho de mingau bem no meio do prato. Mas esse, sei lá por que, a gente não comeu.
(Fonte: TORERO, José Roberto. As primeiras histórias de Lelê. São Paulo, Panda Books, 2007 p.58-62.)
Escreva 5 informações sobre a avó de Lelê que morreu.