CARTA ERRANTE, AVÓ ATRAPALHADA, MENINA ANIVERSARIANTE
Era uma avó. Mais ou menos velhinha, mais ou menos gordinha, tinha o cabelo mais ou menos cinzento, e, dia sim, dia não, dores nas costas que despontavam entre a segunda e a terceira costela, produzindo uma preguiça infinita.
Nesses dias, vovó Lia abria mais tarde a janela de seu quarto e nem ligava para os passarinhos da macieira. Só queria saber do sol: se tivesse, ela descia até o jardinzinho de margaridas brancas que havia nos fundos do prédio. Se não, ela voltava para a cama com uma bolsa de água quente e ficava rabiscando cartas. Se ela gostava de escrever? Na verdade: não. Não tinha a menor vocação para a caneta: confundia as letras e frequentemente esquecia palavras, sendo obrigada a fazer frases compridas para dizer pouca coisa.
(...)
Num desses dias meio aborrecidos, em que o sol não aparece, mas a dor das costas sim, vovó Lia lembrou-se do aniversário da neta Luciana e resolveu escrever uma cartinha.
Vovó Lia estava se divertindo. Apesar da dor nas costas continuar aguda, apesar de saber que a louça do jantar ainda estava esperando na pia, escrever aquela carta para sua netinha, que completava dez anos, estava sendo muito gostoso: dava a impressão de que o tempo tinha voltado atrás e ela não estava mais sozinha.
Luciana era uma menina muito meiga e delicada. Bem diferente do que ela, Lia, tinha sido. Nascida na Polônia, num território que neste século já pertenceu à Rússia e à Áustria, tivera uma infância complicada. A família morava numa aldeia onde volta e meia as casas dos judeus eram invadidas e seus bens saqueados. Tinha passado fome e medo. Frequentemente, a única refeição do dia era uma batata. Mesmo assim, fora uma menina muito alegre. Só que meiga... não deu! Corajosa, espevitada e respondona, era o que diziam dela. Era a terceira dos irmãos, mas todos se voltavam para ela quando era preciso resolver alguma coisa. Sempre sabia o que queria e desde menina o pai viúvo costumava consultá-la sobre questões da casa. Principalmente depois que ela explicou para ele que, já que lavava a louça, cozinhava e arrumava a bagunça dos homens, ela tinha condições de ajudar a escolher o destino do pouco dinheiro que entrava em casa.
(...)
(Fonte: PINSKY, Mirna. Carta errante, avó atrapalhada, menina aniversariante. São Paulo, FTD, 1999.)
Ao ler o desenvolvimento de uma carta bem escrita, sempre ficaremos sabendo