Todo o barbeiro é tagarela, e principalmente quando tem pouco que fazer; começou portanto a puxar conversa com o freguês. Foi a sua salvação e fortuna.
O navio a que o marujo pertencia viajava para a Costa e ocupava-se no comércio de negros; era um dos combóis que traziam fornecimento para o Valongo, e estava pronto a largar.
— Ó mestre! disse o marujo no meio da conversa, você também não é sangrador?
— Sim, eu também sangro...
— Pois olhe, você estava bem bom, se quisesse ir conosco... para curar a gente a bordo; morre-se ali que é uma praga.
— Homem, eu da cirurgia não entendo muito...
— Pois já não disse que sabe também sangrar?
— Sim...
— Então já sabe até demais.
No dia seguinte saiu o nosso homem pela barra fora: a fortuna tinha-lhe dado o meio, cumpria sabê-lo aproveitar; de oficial de barbeiro dava um salto mortal a médico de navio negreiro; restava unicamente saber fazer render a nova posição. Isso ficou por sua conta.
Por um feliz acaso logo nos primeiros dias de viagem adoeceram dois marinheiros; chamou-se o médico; ele fez tudo o que sabia... sangrou os doentes, e em pouco tempo estavam bons, perfeitos. Com isto ganhou imensa reputação, e começou a ser estimado.
Chegaram com feliz viagem ao seu destino; tomaram o seu carregamento de gente, e voltaram para o Rio. Graças à lanceta do nosso homem, nem um só negro morreu, o que muito contribuiu para aumentar-lhe a sólida reputação de entendedor do riscado.
Manuel Antônio de Almeida, Memórias de um sargento de milícias.
(FUVEST 2011 1° FASE) Assim como faz o barbeiro, nesse trecho de Memórias de um sargento de milícias, também a personagem José Dias, de Dom Casmurro, irá se passar por médico (homeopata), para obter meios de subsistência. Essa correlação indica que
I. estamos diante de uma linha de continuidade temática entre o romance de Manuel Antônio de Almeida e o romance machadiano da maturidade.
II. agregados transgrediam com bastante desenvoltura princípios morais básicos, razão pela qual eram proibidos de conviver com a rígida família patriarcal do Império.
III. os protagonistas desses romances decalcam um mesmo modelo literário: o do pícaro, herói do romance picaresco espanhol.
Está correto o que se afirma em